LA_Arquivo

Uma recolha de críticas da autoria de Lauro António, aparecidas em diversas publicações portuguesas.

sábado, junho 24, 2006

LARS VON TRIER:
“DANCER IN THE DARK”


Há filmes que se amam ou se detestam. “Dancer in the Dark” poderá ser um deles. A própria essência da obra a isso convida. Por um lado, o musical não é nos dias de hoje um género popular. Por outro lado, que dizer de um musical que parte (ou se confronta, plano a plano) de um hiper realismo de situações, que roça o construtivismo soviético e o neo-realismo italiano? Se o musical por definição aponta para a criação de um clima de felicidade e alegria quase artificial, que pensar de um musical que subverte por completa as regras e nos mostra uma condenada à morte a cantar uma área de “Música no Coração”, momentos antes de ser executada? Lars Von Trier estica a corda até ao impossível, e o resultado só pode ser mesmo esse: ou se ama apaixonadamente este filme de uma candura e de uma simplicidade desarmantes, ou se detesta este irrealismo que ronda o despudor. Pessoalmente, acho “Dancer in the Dark” uma obra- prima, um daqueles momentos únicos na história do cinema, em que o cinema nos leva a acreditar na vida, nos outros, na arte e em nós próprios.
Lars Von Trier, dinamarquês, tem uma filmografia não muito extensa, mas particularmente interessante, e que vem desde os tempos de “O Elemento do Crime” (1984), até ao seu recente “Os Idiotas” (1998), filme com o qual aderira ao movimento Dogma 85. Entre ambos, ficam “Epidemia” (87), “Europa” (91) “O Reino”, I e II e esse magnifico “Ondas de Paixão” (96). Assumindo-se como um dos mais pessoais e sugestivos "autores" europeus, Lars Von Trier tem uma formação invulgar que lhe irá marcar a trajectória pessoal de forma absoluta, o que “Dancer in the Dark” confirma de forma exemplar. Filho de pais comunistas, adopta nas suas últimas obras um despojamento bressoniano e uma evidente vocação católica. Homem de um rebuscamento de estilo que ronda o caligrafismo em “Europa”, afasta-se desse lado de designer para re-inventar o cinema na sua essência, rodando em vídeo, com uma liberdade de movimentos inesperada.
Quando Lars von Trier começou a imaginar “Dancer in the Dark” pediu à cantora e compositora islandesa Bjork para esta compor as canções para esta película. Depois, pediu-lhe também para interpretar a personagem central, Selma, uma exilada checoslovaca, de trinta e tal anos, mãe solteira de um filho de 12 anos, que vive numa América rural, empregada numa fábrica de moldes de metal. Selma tem uma vida desgraçada, se vista por olhos realistas, mas ela ama os musicais americanos (motivo certamente que a terá levado a escolher os EUA como país de residência) e possui um segredo que guarda só para si: está quase a cegar, vítima de uma doença hereditária, que irá também atacar o filho, se entretanto não for operado. Selma recolhe tudo quanto ganha, para permitir a operação do filho. Esse é o seu segredo bem guardado. A sua única alegria são os ensaios de “Música no Coração” numa companhia de teatro de amadores.
Cada vez mais próxima da cegueira completa, Selma trabalha, trabalha, trabalha, na fábrica, no turno de dia, em casa, de novo na fábrica, agora também no turno da noite. A música e a dança são a fuga que lhe permite suportar a realidade (tal como o cinema o era também para a personagem interpretada por Mia Farrow em “A Rosa Púrpura do Cairo”). Mas aqui a música e a dança nascem da própria realidade que circunda Selma. Enquanto trabalha na fábrica, sempre com um sorriso aberto no seu rosto, Selma vai ouvindo os ruídos compassados das máquinas, dos passos, das vozes, e com esses ruídos vai organizando a sua música, as suas danças, o seu mundo interior onde se refugia meigamente. Este diálogo que se estabelece entre Selma e a música é extremamente interessante de analisar, porque funciona a dois níveis: ela recupera os sons ouvidos na realidade, para os transformar em música, mas ela também transporta a música para a realidade, quer no plano do desejo (muitas das sequências cantadas e dançadas são projecções imaginadas por Selma), quer no do real (são os ecos dos musicais americanos, as vozes de Fred Astaire e Gene Kelly, o sapateado de um tal Oldrich Novy, actor checo que ela recorda da infância, e cujo nome empresta ao pai e ao filho, que permitem a Selma suportar o insuportável).
“Dancer in the Dark” não esquece que o musical também já se cruzara com o melodrama, nomeadamente na Europa, onde o nome de Jacques Demy não pode ser esquecido, em obras como “Une Chambre en Ville”, “As Demoiselles de Rochefort” ou “Os Chapéus de Chuva de Cherbourg”, com os quais Catherine Deneuve estabelece uma ligação. Só deste modo se compreende a presença da actriz neste filme. Ela é o anjo da guarda de Selma, saído directamente dos musicais de Demy. Esta a citação mais óbvia, mas evidentes são também as homenagens (e inspirações) directas a “West Side Story” e sobretudo a “Sete Noivas para Sete Irmãos” (num dos melhores "números" musicais desta obra fascinante).
Rodada em vídeo, “Dancer in the Dark” retoma algumas das prescrições do Dogma 85, mas com uma qualidade e intencionalidade bem diferente das vistas por exemplo em “A Festa”. Aqui, Lars Von Trier procura a liberdade de uma câmara que não encene demasiado, que mantenha a espontaneidade, que surpreenda. Como nessa sequência que relembra “Seven Brides for Seven Brothers”, rodada com cem câmaras de vídeo, o que impossibilitava, nas palavras do próprio realizador, encenar a cena para todas as câmaras, permitindo algumas surpresas bem vindas.
Bjork, enquanto Selma, é uma revelação. Não parece que a cantora queira prosseguir a carreira de actriz, e cremos que fará bem. Este é o papel de uma vida. Ela não voltará a ter outra oportunidade ( e se tiver, será para se repetir). Mas a Selma de Bjork é uma figura inesquecível na história do cinema, a partir de agora. A sua alegria de viver, que transparece de cada olhar, de cada gesto, a sua ingenuidade, a sua generosa entrega, o seu amor, a timidez e a exuberância que a habitam em diferentes tempos, tudo faz desta personagem uma mulher ímpar, um ser humano como há muito se não via no cinema. A seu lado, David Morse, Peter Stormare e Joel Grey são outros tantos motivos de recomendação.
Raras vezes se poderá assistir a um melodrama tão negro. Raras vezes de um melodrama tão desesperado se sai com tanta esperança e tanta fé no Homem. Lars Von Trier e Bjork construíram o milagre. Numa perspectiva católica, pode mesmo falar-se em milagre. Cinematograficamente, também (apesar do vídeo!).

DANCER IN THE DARK (Dancer in the Dark), de Lars Von Trier (Dinamarca, 2000), com Björk (Selma), Catherine Deneuve (Kathy), David Morse (Bill), Peter Stormare (Jeff), Udo Kier (Dr. Porkorny), Joel Grey (Oldrich Novy), Vincent Paterson (Samuel), Cara Seymour (Linda), Jean-Marc Barr (Norman), etc. 139 minutos; M/ 12 anos. In “A Bola” de 5.11.2000

STEPHEN DALDRY:
“BILLY ELLIOT”


A grande coqueluche do cinema inglês chama-se este ano “Billy Elliot2, o filme que tem arrebatado corações, lotado as plateias de cinema, conquistado prémios em festivais e críticas ditirambicas nos jornais e revistas de todo o mundo. Depois de várias recompensas no British Academy Awards, avizinham-se os Oscars, para onde parte com três nomeações (melhor realizador, actriz secundária e argumento original).
Na linha de uma tradição de cinema social e realista, que tem feito ao longo das décadas alguma da grandeza da cinematografia britânica, este filme de mais um encenador de teatro (do Royal Court Theatre) que se lança no cinema com sucesso (casos de Sam Mendes, Anthony Minghela, entre outros) assenta numa base bem realista (uma cidade mineira no norte de Inglaterra, em plena época de crise, durante o reinado de Margareth Thatcher).
Billy Elliot é filho e irmão de mineiros, ainda por cima em greve. Tem onze anos e aprende boxe, até que um dia as miúdas que estudam dança são obrigadas a ensaiar no ginásio onde se cruzam os murros dos “homens”. Billy Elliot descobre então o seu talento natural para a dança, que Mrs. Wilkinson (uma prodigiosa Julie Walters, que já ganhou um Oscar com “A Educação de Rita”) vai incentivar, contra a natural tendência da terra, que vê com maus olhos um rapaz a dançar. Habituados à aspereza do dia a dia, os mineiros não aceitam um filho dançarino (a quem chamam logo de “maricas”), e o calvário do pequeno Elliot vai começar, ensaiando às escondidas, mas gritando rua fora a sua natural alegria e raiva com passes de dança que relembram os grandes musicais. Entre “O Vale era Verde” e “Oliver” (musical).
Esta mescla de realismo duro e cru com a fantasia do musical é excepcionalmente bem recriada pela câmara de Stephen Daldry e pelo talento invulgar de Jamie Bell, que reúne também em si um rosto de provinciano vincado pelo rigor da vida, a elegância máscula de um bailarino e a sinceridade de um grande actor em gestação. As sequências de bailado que se intercalam harmoniosamente na narrativa, e que representam momentos de revolta contra o destino, são excelentes, desde os ensaios iniciais, até às explosões de vitalidade e furor com que termina.
Stephen Daldry tem um olhar pudico e uma maneira discreta de se aproximar das personagens, descrevendo situações de um forte realismo social (as greves, a vida familiar), ora partindo para uma fantasia utópica ou um humor bem doseado. Há, neste aspecto, muitos momentos notáveis (um exemplo: Elliot e uma amiga passeando por uma rua, ela riscando as paredes com um ramo de árvore, passando pelos escudos da polícia de choque sem se dar conta disso...) e apenas um certo tom melodramático retira algum fôlego a esta notável estreia na longa metragem (antes realizara apenas “Eight”, em 1998). Também nos parece que o filme lucraria em acabar dez minutos antes (quando Elliot é aceite como aluno de uma prestigiosa escola de Londres), escusando-nos às explicações finais, que julgamos desnecessárias, e se destinam a tudo explicar (inclusive o futuro “gay” do amigo de Elliot).

BILLY ELLIOT (Billy Elliot), de Stephen Daldry (Inglaterra, 2000), com Julie Walters (Mrs. Wilkinson), Jamie Bell (Billy Elliot), Jamie Draven (Tony Elliot), Gary Lewis (Jackie Elliot), Jean Heywood (avó), etc. 110 min; M/ 12 anos. / in “A Bola” de 18.03.2001

ROBERT ZEMECKIS:
“A VERDADE ESCONDIDA”



“A Verdade Escondida”, de Robert Zemeckis, é um filme curioso a vários níveis. Primeiro, começa por demonstrar que o seu realizador, muito embora seja homem de grandes recursos e inclusive capaz de excelentes momentos de bom cinema, não é um autor. Quer a série “Back to the Future”, como o divertido “Who Framed Roger Rabbit”, ou ainda os bem sucedidos “Death Becomes Her, Forrest Gump” (que lhe valeu o Oscar para melhor realizador) ou “Contact” estão bem longe de possuírem uma lógica interna que os relacione entre si, para lá da evidência de um mesmo realizador. O mesmo se poderá dizer de um dos seus filmes de início de carreira, “Romancing the Stone”, e agora deste “What Lies Beneath”. Robert Zemecis é um bom realizador, que vive muito da qualidade dos argumentos que escolhe, mas a que não empresta nenhum cunho pessoal e autoral. “What Lies Beneath” é mais uma prova disso. Prova da excelência do trabalho de Zemecis por um lado, prova da ausência de uma marca individual por outro. “What Lies Beneath2 é um excelente trabalho de fábrica, com alguns relampejos de génio por parte de Michele Pfeiffer, mas pouco mais.
Claire Spencer (Michele Pfeiffer), violoncelista com carreira em ascensão, mãe solteira, apaixona-se pelo dr. Norman Spencer (Harrison Ford) com quem casa. Norman, professor universitário e investigador na área da biologia, vive obcecado pela imagem prestigiada do pai, a quem quer fazer esquecer. Mas é na casa herdade do pai que vive.
Depois de mandarem a filha de Claire para a Universidade, o casal fica sozinho nessa herdade perdida na bela paisagem de Vermont. Uns vizinhos recentes vêm animar os serões. Não só Claire os começa a espiar de longe, procurando um assassinato (“Janela Indiscreta”), como os ecos das tempestuosas noites de amor do casal Feur não se deixam de fazer ouvir. E assim corre a primeira hora de “A Verdade Escondida”, com portas que se abrem sozinhas, vozes e ruídos estranhos que se ouvem, fotografias que caiem no chão por si sós, chinelos abandonados com pingos de sangue, carros escondidos e mulheres desaparecidas. Mais ou menos a meio do filme, cansados de seguirem esta via, os argumentistas derrotam Claire e as suas teorias conspiratórias. Dão o dito por não dito, e partem para outra. Agora estamos no domínio do sobrenatural. Claire, que já vinha a ameaçar com a visão de fantasmas, intensifica os seus receios. Agora, reflectido na água da banheira, aparece um rosto de mulher, estranhamente parecido com o seu, mas que dias mais tarde irá saber ser o de uma tal Madison Elizabeth Frank, intempestiva e talentosa aluna desaparecida há um ano, sem deixar rasto. E é no seu encalce que parte Claire. Trata-se de um novo filme, ainda que com os mesmo personagens, agora com muitas cenas de casa de banho e ralos de banheiras (“Psico”), e alguns telefonemas por meio em situações delicadas (“Chamada para a Morte”). Como se vê, Alfred Hitchcock ao seu melhor, em homenagem a preceito. Neste tipo de referências, preferimos de longe Brian De Palma, também ele vampirizador do mestre do suspense, mas com mais talento e uma personalidade mais forte.
Michele Pfeifer, com 42 anos, está linda de morrer (literalmente!) e cada vez melhor actriz. Há momentos sublimes neste filme, em que ela deixa uma marca inesquecível. Harrison Ford, com 58 anos e preparando-se para interpretar um novo episódio de “Indiana Jones”, procura mudar de registo e deixar de ser o herói de todos os dias. Vimo-lo como viuvo atraiçoado pela mulher, num simpático filme de Sydney Pollac, e agora surge, em “A Verdade Escondida”, como esposo extremado no primeiro filme e como personagem ambígua (?) no segundo.
Quanto a Zemeckis já dissemos quase tudo. Mas valerá a pena acentuar a justeza de algumas cenas, rodadas com uma envolvência de câmara notável (as personagens são, por vezes, focadas ao longe, de costas, criando um seguro clima de inquietação), com uma excelente utilização da banda sonora (o silêncio faz-se ouvir nalgumas cenas de forma arrepiante, noutras a música hitchcockeana é também ele de bom recorte).

A VERDADE ESCONDIDA (What Lies Beneath), de Robert Zemeckis (EUA, 2000), com Harrison Ford (Dr. Norman Spencer), Michelle Pfeiffer (Claire Spencer), Diana Scarwid (Jody), Joe Morton (Dr. Drayton), James Remar (Warren Feur), Miranda Otto (Mary Feur), Amber Valletta (Madison Elizabeth Frank), Katharine Towne (Caitlin Spencer), Victoria Bidewell (Beatrice), etc. 129 minutos; M/ 12 anos. / in “A Bola”, de 12.11.2000

WOLFGANG PETERSEN:
“TEMPESTADE”


A faina da pesca e a vida corajosa dos pescadores tem dado alguns filmes interessantes, tanto do cinema americano, como a nível do cinema internacional, inclusive no caso português. Referindo apenas alguns marcos, será de não esquecer os documentários de Robert Flaherty (“Nanouk, o Esquimó”, 1922, e “O Homem de Aran”, 1934) ou da escola inglesa (“Drifters”, de John Grierson, 1929), passando depois por ficções mais ou menos documentais de Emilio Fernandez (“A Pérola”, 1946), Visconti (“A Terra Treme”, 1948), por John Huston (“Moby Dick”, 1956), John Sturges (“O Velho e o Mar”,1958), Henry Hathaway (“Capitães do Mar”,1949), Victor Fleming (“Lobos do Mar2,1937), Howard Hawks (“O Tigre dos Mares”, 1932) para chegar ao mais recente “Alamo Bay”, de Louis Malle, 1985. No cinema português também a luta do homem com o mar em busca de sobrevivência está testemunhada em inúmeros exemplos, desde “Nazaré, Praia de Pescadores” ou “Ala Arriba”, de Leitão de Barros, passando por “Nazaré”, de Manuel Guimarães, até terminar no recente “Tarde Demais”, de José Nascimento.
Feita esta rápida panorâmica, que deixa vários títulos importantes de fora, é altura de verificar que todos estes filmes ou são abertamente documentários, ou contam com uma forte componente documental. O drama diário do pescador anónimo a isso leva. É por demais impositiva esta presença documental, de um ofício espectacular e dramático como poucos. Mas também é facilmente verificável que, quando não se trata abertamente de documentários, os argumentistas se servem de dramas e conflitos humanos para os colocar no cenário do confronto quotidiano do homem com o oceano. Quer dizer, raras o conflito se centra na luta do homem com as vagas alterosas. Para lá deste conflito, há ainda paixões humanas, rivalidades, lutas de interesses, etc.
Em “Tempestade”, de Wolfgang Petersen, nada mais há do que um grupo de homens, a bordo de um barco de pesca de espadarte, enfrentando a maior tempestade de sempre, um cataclismo natural que reuniu num mesmo ponto três tempestades com origens diversas. Saído do porto de Cloucerter, o "Andrea Gail" vai afrontar o destino. É a luta do homem contra os elementos, tentando domá-los e triunfar sobre eles. Ou morrer. As paredes da igreja de Cloucester estão repletas de nomes de desditosos marinheiros que não conseguiram ultrapassar o destino e as vagas alterosas. Entre esses nomes, que reúnem naufrágios de três séculos, estão também os dos tripulantes do "Andrea Gail". A coragem do filme de Wolfgang Petersen é igualmente essa: cinematizar um caso verídico, não ficcionar para lá da realidade, e não se furtar ao final trágico. Mas o Titanic era uma boa referência: nem sempre o "happy end" é necessário para um êxito de bilheteira.
Acontece que manter durante mais de duas horas e espectador agarrado a uma história quase sem história, e que se sabe de antemão o resultado, é difícil. “The Perfect Storm” oscila até ao intervalo, preparando a viagem para a morte, mas depois acelera em velocidade de cruzeiro quando a "tempestade perfeita" surge no horizonte e fustiga o navio.
O alemão Wolfgang Petersen (há anos a trabalhar no cinema americano: “Enemy Mine” (1985), “Shattered” (1991), “In the Line of Fire” (1993), “Outbreak” (1995) ou “Air Force One” (1997), já nos dera um excelente “Submarino” (Das Boot, 1981), precisamente um dos seus últimos filmes germânicos, aquele que o haveria de catapultar para Holywood. Mostra-se aqui de novo muito à vontade no elemento liquido, dando-nos um filme catástrofe excelentemente dirigido, bem servido de efeitos especiais e desempenhado com brio por um elenco dominado por George Clooney, mas bem ajudado por Mark Wahlberg, Diane Lane, Karen Allen, William Fichtner, Mary Elizabeth Mastrantonio e John C. Reilly.

TEMPESTADE (The Perfect Storm), de Wolfgang Petersen (EUA, 2000), com George Clooney (Capitão Billy Tyne), Mark Wahlberg (Bobby Shatford), Diane Lane (Christina "Chris" Cotter), Karen Allen (Melissa Brown), William Fichtner (David "Sully" Sullivan), Bob Gunton (Alexander McAnally), Mary Elizabeth Mastrantonio (Linda Greenlaw), John C. Reilly (Dale "Murph" Murphy), Michael Ironside (Bob Brown), etc. 129 min; M/ 12 anos.

GEORGE CLOONEY

George Timothy Clooney nasceu em Lexington, Kentucky, nos Estados Unidos, a 6 de Maio de 1961, filho de Nick Clooney, jornalista de TV em Cincinnati. Foi frequentador habitual dos estúdios desde os cinco anos de idade, chegando mesmo a rivalizar com o pai nalguns programas. Trocou a televisão pela frequência da Universidade de Northern Kentucky, mas não conseguiu pertenceu à equipa de baseball, os Cincinnati Reds. O actor José Ferrer era seu tio, e a cantora e actriz Rosemary Clooney sua tia. Voltou a televisão como actor e partiu para Hollywod em 1982. Estudou arte de representar na Beverly Hills Playhouse. O seu primeiro filme para cinema, ao lado de Charlie Sheen, nunca estreou mas chamou a atenção para a sua presença, projectando-o para uma carreira de sucesso garantido.
Foi considerado, em 1997, "O Homem Mais Sexy" pelo People Magazine e votado como "O Homem Mais Bem Vestido da Televisão" A revista People considerou-o "uma das 50 pessoas mais bonitas do mundo" (1996).

Filmografia como actor:

1984 - "E/R" (série de TV)
1986 - Combat High (TV)
1986 - "The Facts of Life" (série de TV)
1987 - Grizzly II: The Predator
1987 - Return to Horror High
1988 - "Roseanne" (série de TV)
1990 - Red Surf
1990 - "Sunset Beat" (série de TV)
1991 - "Sisters" (série de TV)
1991 - "Baby Talk" (série de TV)
1992 - Unbecoming Age
1992 - "Bodies of Evidence" (série de TV)
1993 - The Harvest
1993 - Without Warning: Terror in the Towers (TV)
1996 - One Fine Day (Um Dia em Cheio)
1996 - From Dusk Till Dawn (Aberto até ao Amanhecer)
1997 - The Peacemaker (O Pacificador)
1997 - Full Tilt Boogie
1997 - Batman & Robin (Batman e Robin)
1998 - Waiting for Woody
1998 - The Thin Red Line (Barreira Invisivel)
1998 - Out of Sight (Romance Perigoso)
1999 - Three Kings (Os Três Reis)
1999 - South Park: Bigger, Longer and Uncut (voz)
1988 - Return of the Killer Tomatoes!
2000 - The Perfect Storm (Tempestade)
2000 - O Brother, Where Art Thou?
2000 - Fail Safe (2000) (TV)
2001 - Ocean's Eleven
in "A Bola", de 20.08.2000

PAULO ROCHA:
“A RAIZ DO CORAÇÃO”

Paulo Rocha, depois de um belíssimo “O Rio de Ouro”, regressa a Lisboa, trinta e tal anos depois de “Os Verdes Anos” (1963), e regressa de forma não muito inspirada (é o menos que se pode dizer deste “A Raiz do Coração”). Parece que no início o quer se pretendia era realizar um “musical”, mas dificuldades várias fizeram o projecto ficar-se a meio caminho entre a sátira política e a fantasia.
Ambientado em Lisboa, no ano de 2010 (não se percebe muito bem porquê, dado que nada distingue a Lisboa de hoje dessa Lisboa 2010, a não ser o facto de as ruas serem disputadas por bandos de para-militares ao serviço de um candidato à câmara da capital e grupos de estouvadas “darg queens!), “A Raiz do Coração” fala-nos de Catão (Luís Miguel Cintra) que anda em campanha para assumir a presidência do município, com palavras de ordem de um nacionalismo requentado (apologia da família, da ordem, da segurança, invectivando a droga, a prostituição, etc. , etc.). Acontece que, enquanto nos comícios, protesta contra tudo isso, na vida privada consome cocaína e vive obcecado por uma tal Silvia (Joana Bárcia), que nascera rapaz e lhe consumara as fantasias mais secretas desde tenra idade. Temos assim, mais uma vez, a velha teoria de que “bem prega a direita nacionalista”, podendo todavia acrescentar-se que o melhor é “fazer o que ela diz, não fazer o que ela faz.” Na verdade, em “A Raiz do Coração”, não estão em causa os conceitos, a ideologia fascista de um candidato, mas o facto dele proclamar certos valores, e depois viver fora deles na sua intimidade. Bem mais interessante seria discutir a própria ideologia, do que parodiar pelo enésima vez os maus costumes dos “nacionalistas”. Ainda por cima sem grande graça, e sem nenhuma originalidade.
Mas o filme é ainda completamente falhado no plano da fantasia musical: os grupos de “drag queens” e travestis que invadem as noites de Lisboa são pouco menos que ridículos, os pelotões de polícias privados meras anedotas que se voltam contra o filme. Se a fotografia de Elso Roque é por vezes brilhante, dando-nos uma Lisboa excelentemente iluminada e enquadrada, se a escolha dos cenários naturais é notável, mostrando como Lisboa pode ser uma cidade profundamente fotogénica e cinematográfica, o argumento de “A Raiz do Coração” nunca arranca de um confrangedor convencionalismo. Há cenas em que tanto a realização como a direcção de actores são francamente deficientes (Catão a ser entrevistado pela imprensa nos corredores do município; o ataque das milícias armadas aos travestis junto ao rio; a morte de uma das “drag queens”; o ataque das “drag queens” às milícias no castelo de S. Jorge; o comício do castelo de S. Jorge com um saltitante Miguel Guilherme que tão depressa está no palanque como junto a umas escadas, como logo a seguir de novo junto ao “leader”, etc.).
Escrito por Paulo Rocha, Raquel Freire, Regina Guimarães e Jeanne Waltz, com música original de José Mário Branco (por vezes bastante boa), “A Raiz do Coração” representa um passo em falso na carreira de Paulo Rocha. Uma derrapagem que nem a presença de actores como Luís Miguel Cintra e Isabel Ruth consegue atenuar, muito embora ambos tentem erguer personagens com alguma densidade e credibilidade. Mas o registo de representação que o filme escolheu, entre o realismo e a fantasia, entre a denúncia da corrupção política e a farsa fantasista “à la Fellini”, nunca se impõe, arrastando no equívoco toda a equipa. A sombra de Pedro Almodovar anda também por ali, mas nunca pousa.

** A RAIZ DO CORAÇÃO, de Paulo Rocha (Portugal, 2001), com Luis Miguel Cintra (Catão), Joana Bárcia (Silvia), Melvil Poupaud (Vicente Corvo), Isabel Ruth (Ju), Miguel Guilherme (Oscar), António Durães (Infante), Filipe Cochofel (Lucas), Fernando Heitor (Roberta), José Manuel Rosado (Filipa), Fernando Santos, etc. 114 min; M/ 121 anos.

Os Filmes de Paulo Rocha

1963 - Os Verdes Anos
1967 - Mudar de Vida
1971 - Sever do Vouga... Uma Experiência
1972 - A Pousada das Chagas
1978 - A Ilha dos Amores
1984 - A Ilha de Moraes
1987 - O Desejado
1993 - Oliveira, o Arquitecto
1993 - Portugaru San - O Sr. Portugal em Tokushima
1995 - Shohei Imamura - Le libre penseur (TV)
1998 - O Rio do Ouro
2000 - A Raíz do Coração

in "A Bola" de 28.1.2001

SCOTT HICKS:
“A NEVE SOBRE OS CEDROS”

Pode dizer-se que tudo já foi escrito e filmado. A possível originalidade de um novo livro ou de um novo filme está na forma como ele é concebido. Quer dizer: a originalidade não está tanto no que se conta, mas sobretudo na personalidade de que quem narra. A Neve Caindo sobre os Cedros fala de um tema pouco visto no cinema (os japoneses na América, após Pearl Harbour e após a II Guerra Mundial), mas a curiosidade maior do filme de Scott Hicks (o australiano que nos dera Shine), está no estilo encontrado pelo cineasta para o abordar.
A história parte de um romance de David Guterson, e foi adaptada ao cinema por Ronald Bass e o próprio realizador, e acompanha uma década da história da América, vista de uma pequena povoação de uma ilha onde a pesca ocupa predominantemente os seus habitantes, grande parte dos quais de origem nipónica. Ainda adolescentes, Ismhael apaixona-se por Hatsue e ambos se refugiam na floresta, por entre os cedros, para gozar este idílio de miúdos que descobrem dentro de si o pulsar de energias que desconhecem. Depois, os japoneses atacam Pearl Harbour, a América parte para a guerra, Hatsue separa-se de Isnhael que parte para a frente de combate, os janopens são colocados em campos de concentração nos EUA, e mesmo depois da guerra Ter terminado os preconceitos mantém-se. Tanto assim que, logo que um pescador aparece morto, enrolado nas redes do seu próprio barco, as pessoas começam a pensar no jovem japonês que casara com Hatsue, e que vai a tribunal, acusado deste crime.
Grande parte do filme passa-se em 1950, durante o julgamento. Esse o tempo real de Snow Falling on Cedars. Mas toda a obra vive de um constante vai vem (em forma de flahs back) entre o tempo real, as recordações dos amores de adolescência e a reconstituição dos momentos que antecedem a morte do pescador. Digamos que Scott Hicks se alonga demasiado nesse processo, encantado com a fotografia deslumbrante de Robert Richardson, e a direcção artística e os cenários, não menos notável, de Jeannine Claudia Oppewall, Doug Byggdin e Jim Erickson. O filme dura um pouco mais de duas horas, e quinze minutos a menos seriam benvidos, no computo geral. Mas a verdade é que o cineasta consegue uma envolvência de estilo muito curiosa, jogando com uma câmara particularmente movel, deslizando peals personagens e os cenários, com uma montagem que "liga", por vezes de forma admirável, tempos e situações diferentes, com uma banda sonora que se encarrega igualmente de unificar e prolongar cenas e significados.
Depois há momentos de quase experimentalismo formal, com uma inteligente montagem que vai lentamente organizando os flashs, integrando peças de um mesmo puzzle que espectador vai interpretando e re-interpretando a cada nova leitura. A beleza sufocante de 90% das imagens, rodadas numa paisagem invernosa de neve e chuva, com cores que alternam o gelo dos cenários com o calor das paixões, muito ajuda Snow Falling on Cedars, transformando-o numa obra certamente a não perder, muito embora longe do brilhantismo de uma obra-prima. Mas as obras primas são tão raras, e o cinema sensível e inteligente tão difícil de encontrar que este filme de Scott Hicks merece certamente a atenção do espectador.
De resto, há um longo plano que o cineasta não teve a coragem de cortar (honra lhe seja feita!) que merece figurar em todas as histórias do cinema, como um lição da arte de representar. Referimo-nos a um plano de Max Von Sydow, advogado de defesa, exaltando as virtudes de tolerância dos americanos nas alegações finais. Ver este plano e ganhar o dia. Um prodígio de emoção contida e de fulgor interpretativo.

***** A NEVE CAINDO SOBRE OS CEDROS (Snow Falling on Cedars), de Scott Hicks (EUA, 1999), com Ethan Hawke (Ishmael Chambers), Youki Kudoh (Hatsue Miyamoto), Rick Yune (Kazuo Miyamoto), Max von Sydow (Nels Gudmundsson), James Rebhorn (Alvin Hooks), James Cromwell (Juiz Fielding), etc. 127 min; M/ 12 anos.

SAM MENDES:
“BELEZA AMERICANA”


Uma família americana, num suburbano bairro americano, povoado por americanos típico dos anos 90. As frases em moda: "Eu sou o Rei!", "Eu não quero ser vítima!", "O segredo do meu êxito está em mostrar sempre uma imagem de sucesso", "Eu não sou vulgar!"... Ao lado, um pobre diabo que confessa que "ele próprio também se teria esquecido da sua cara." Despedido do emprego, donde sai com uma pequena "recompensa" para calar uma chantagem de última da hora, fracassado como marido e pai, Lester Burnham é a imagem do falhado a quem a mulher dá ordens e a filha odeia. Um homem "vulgar", o pior que a América do "triunfo económico" consente. Na casa ao lado, um casal de "gays" bem sucedidos na vida. Do outro lado da cerca do jardim, um velho oficial reformado, que guarda religiosamente faianças nazis, com um filho que oculta a sua actividade de "dealer" e vai gravando em vídeo momentos desta "beleza americana". E uma mulher embalsamada em indiferença e maus tratos. Dir-se-ia uma comédia de costumes, mas o olhar distante de Sam Mendes restitui-nos num realismo estilizado, por vezes fantástico e onírico, esta nova "tragédia americana", que rapidamente sufoca o riso e deixa crescer a angústia.
Raras vezes o cinema norte americano actual foi tão crítico e tão desesperado. Contra uma árida parede, um saco de plástico branco revolteia ao vento, num chão amassado de folhas mortas - este é o momento de "beleza" que o vídeo amador resguarda de dezenas e dezenas de horas de gravação. A ambição do lucro fácil e do triunfo pessoal transforma a sociedade americana numa parada de pequenos e grandes monstros ávidos de poder - e que outro poder pode ser mais sensível do que o de uma arma a disparar, numa carreira de tiro, ou no crânio de alguém que subitamente se torna incómodo?
Nunca há, no entanto, um olhar de desprezo para com este "puzzle" das fragilidades humanas. Que ternura se não esconde nas relações que se estabelecem entre Lester e Angela, a amiga da filha, quando esta confessa que é a "primeira vez"? Que solidão terrível esconde o olhar perdido da mulher do velho oficial? Que drama oculto não varre a chuva que cai na noite em que este procura Lester na sua garagem? A angústia da mulher de Lester abraçando as camisas penduradas no guarda roupa? O ódio confessado para a câmara de vídeo pela filha de Lester? A ternura de uma mão que procura outra. O acariciar de um braço. A sobrevivência da emoção, para lá do horror. “Re-Animator” - uma cabeça decepada que persegue a beleza.
Admiravelmente dirigido por Sam Mendes, interpretado de forma tocante por um elenco sem falhas, “American Beauty” prefila-se como o mais sério candidato aos Oscars de Hollywood. Estará alguma coisa a mudar na "fábrica de sonhos"?

****** BELEZA AMERICANA (American Beauty), de Sam Mendes (EUA, 1999), com Kevin Spacey, Annette Bening, Thora Birch, Scott Bakula, Mena Suvari, Peter Gallagher, etc. 121 min; M/ 16 anos.


Sam Mendes

“American Beauty” assinala a estreia de Sam Mendes na realização. Nascido em Inglaterra, em 1965, com uma profunda ascendência portuguesa, estudou na Universidade de Cambridge, tendo começado a trabalhar no Chichester Festival Theatre em 1987. Dirigiu Judi Denche, em “The Cherry Orchard”, e em 1990 transferiu-se para a Royal Shakespeare Company, onde se tornou notado com encenações de “Troilus and Cressida”, com Ralph Fiennes, “Richard III” e “The Tempest”. A partir de 1992, Mendes passa a director artístico da Donmar Warehose em Londres e conhece alguns grandes êxitos e colecciona vários prémios, em encenações de “Cabaret”, “The Glass Menagerie”, “Company”, “Assassins”, “Glengarry Glen Ross”, “Habeas Corpus” e “The Front Page”. Mais recentemente, dirigiu Nicole Kidman, em Londres e na Broadway, em “The Blue Room”, e recebeu a consagração com a produção londrina de “The Rise and Fall of Little Voice”.
Considerado presentemente um dos mais prestigiados encenadores mundiais, a sua estreia no cinema dá-se pela mão de Steven Spielberg, que o convida para dirigir “American Beauty”, para a Dreamworks, sobre argumento original de Alan Ball, que aqui também se estreia no cinema, depois de uma longa carreira como argumentista de televisão. /
in "A Bola", de 13.2.2000

NEIL LABUTTE:
“BETTY”

“Betty” ficará certamente, e desde já, entre os melhores filmes estreados em Portugal neste ano de 2001. Trata-se efectivamente de uma belíssima comédia de humor negro, partindo de um excelente argumente (melhor argumento no festival de Cannes de 2000) e fabulosamente interpretada por Renée Zellweger (Globo de Ouro para a melhor actriz de comédia).
A complexa relação entre a realidade e a ficção é a base desta obra, que tem por protagonista Betty, uma empregada de café que vive obcecada por uma “soap opera” (uma telenovela diária, das que se produzem nos EUA). “A Reason to Love”, assim se chama a telenovela em causa, passa-se no universo dos hospitais (“Hospital Central” parece ser a inspiração) e tem o Dr. David Ravell como herói abnegado da Humanidade e fonte de inspiração para as fãs que se multiplicam pelos quatro cantos do continente americano. Como é o caso de Betty, que vive no Kansas, casada com um brutamontes, vendedor de automóveis, que trafica drogas e vai atraiçoando a mulher com quem pode. Betty ajustou a sua vida ao horário da telenovela, e estabelece um equilíbrio notável entre a visão do romance que a televisão oferece e a distribuição de café pelas chávenas que se dispõem no balcão. A adesão à telenovela é a sua maneira de fugir a uma realidade dura e infeliz, onde não se sente realizada. O que relembra “A Rosa Púrpura do Cairo”, de Woody Allen, onde Mia Farrow se comportava de forma idêntica, tendo o cinema como referência. Estávamos então nos anos 30, na época da grande depressão económica nos EUA, o cinema era o fenómeno de massas, e a grande “fábrica dos sonhos”. Agora estamos em 2000, numa América de “milagre económico” (os anos Clinton) e a TV é o grande portal da utopia.
O instável equilíbrio conseguido por Betty, irá sofrer um forte revés, no dia em que vê o marido ser abatido por uma parelha de assassinos contratados (Charlie e Weslley), que o escalpelizam à boa maneira índia, antes de o abaterem a tiro. Betty, em lugar de assumir a realidade, medonha, refugia-se na ficção e parte para Los Angeles em busca do seu príncipe encantado que, no episódio da noite, dissera que andava “à procura da mulher dos seus sonhos”. Betty julga que é essa mulher, e vai ao encontro do imaginário Hospital, que afinal irá descobrir reconstruído em paredes de cenário num estúdio de televisão de Hollywood. Mas até enfrentar a realidade, a empregada de café passa por enfermeira e confronta-se com o Dr. David Ravell numa recepção de beneficência que deixa toda a gente estupefacta.
O argumento é extremamente interessante e inteligente, quer na construção quer nas referências para que remete. Renée Zellweger, e a sua fabulosa composição de Betty, é associada à Doris Day nos anos 50 e 60, e as sugestões da mitologia do cinema não se ficam por aqui. Vários momentos “musicais”, admiravelmente encenados por Neil LaBute, apontam para esse imaginário. O diálogo entre a ficção e a realidade, entre a vida e a televisão é extremamente curioso. Afinal será ao assumir a ficção (tornando-se parte integrante da “soap”) que Betty se integra na realidade. Mas o plano final de umas “férias em Roma” (a mitologia do cinema a funcionar de novo!) não permite grandes esperanças, apesar do falso “happy end”: o empregado de café, que não desvia os olhos do écran da TV para passar a factura da conta, também ele troca a realidade pela ficção (afinal a realidade está mesmo a seu lado, e ele “não a vê”, enfeitiçado que está pela ficção!).
Renée Zellweger, já o dissemos, é simplesmente fabulosa. A sua composição é comovente, de graça, de inocência, de fulgor. Já a tínhamos visto em ”Jerry Maguires”, mas aqui supera tudo e impõe-se como uma estrela indiscutível. Morgan Freeman (Charlie), e Chris Rock (Wesley) são uma dupla de “killers” invulgares. Greg Kinnear (no duplo papel de Dr. David Ravell e do actor George McCord) relembra o seu excelente trabalho em “Melhor é Impossível”, e Aaron Eckhart (no grotesco Del Sizemore), continua a ser o actor fetiche de Neil LaButte.
Quanto ao realizador, Neil LaButte, uma das grandes promessas do cinema independente norte americano (nascido a 19 de Março de 1963, em Detroit, Michigan, EUA), depois de realizar duas obras que lhe conferiram um estatuto de culto (“In the Company of Men2 (1997) e “Your Friends & Neighbors” (1998), aparece na grande produção com este “Nurse Betty” que o revela já não como esperança, mas como um dos valores mais sólidos das novas gerações americanas. A seguir a “Betty” rodou “Possession” (2001), e “In the Company of Men” vai estar disponível em Lisboa (entre 19 e 23 de Fevereiro, no Cine 222), numa realização da Geniuzastare. A não perder também. Como a não perder é a visão de “Betty”. E digo-lhe mais: vá sem demora, porque a carreira do filme não é brilhante, e deve estar a sair das salas. O que é, no mínimo, uma injustiça.

****** BETTY (Nurse Betty), de Neil LaBute (EUA, 2000), com Morgan Freeman (Charlie), Renée Zellweger (Betty Sizemore), Chris Rock (Wesley), Greg Kinnear (Dr. David Ravell/George McCord), Aaron Eckhart (Del Sizemore), Tia Texada (Rosa), etc. 108 min; M/ 12 anos. In “A Bola”, de 11.2.2000

DOMINIC SENA:
"60 SEGUNDOS”


Em 1974, o "stunt man" H.B. Halicki, especialista em corridas de automóveis, dirigiu “Gone in 60 Seconds”, um filme de série B que desconhecemos, mas parece ter tido algum sucesso na América. H.B. Halicki era igualmente o protagonista (Maindrian Pace), um ladrão de automóveis que roubava carros num abrir e fechar de olhos e se apaixonava pelo objecto da sua afeição. O título teve tal êxito que mereceu uma sequela em 1982, dirigida pelo mesmo H.B. Halicki: “Gone In 60 Seconds 2: The Junkman”. O realizador e actor, que se tornaria uma lenda na América, haveria de falecer em 1989, vítima de um acidente (que nada teve a ver com carros!) quando actuava como "stunt man" num remake de “Gone in 60 Seconds” que dirigia e nunca chegaria a concluir-se.
Se a película de 1974 não justificava especiais encómios cinematográficos, as proezas com as perseguições automobilísticas ficaram memoráveis. Sem terem a qualidade e o impacto de outras corridas, bem mais chorudas em termos de orçamento (quem não recorda “Bullit”, “To Live And Die In L.A.”, “Ronin”, “Jade”, ou “The French Connection”, para só citar algumas das mais célebres?), diz quem viu que a sua quantidade e extensão (uma perseguição de cerca de 40 minutos é obra!), ficaram na memória e terão justificado certamente o interesse dos produtores para um "remake" actual, com outras condições de produção.
Para dirigir esta nova versão de “60 Segundos”, foram buscar Dominic Sena, um realizador que se havia notabilizado com “Kalifornia2, um thriller bastante interessante, sobre um escritor que procura informações sobre serial killers e que viaja pelos EUA, até que é assaltado por um deles. O filme era muito interessante e o seu realizador ganhou com ele carta de alforria para passar a outros voos. Infelizmente 60 Segundos dá-lhe oportunidade para movimentar um orçamento melhorado, mas o argumento de Scott Rosenberg, baseando-se em personagens e situações criadas por H.B.Halicki, não é de molde a justificar grandes entusiasmos, sobretudo pela previsibilidade de tudo quanto vai ocorrendo.
Randall "Memphis" Raines (Nicolas Cage) é um antigo ladrão de automóveis, que é também uma lenda tanto para ladrões como para polícias. Retirado da actividade, trabalha numa gasolineira e dá instrução de condução a miúdos numa carreira de Karting. Mas um dia o irmão, que o substituiu na saga de roubar automóveis de luxo, falha um negócio para um mafioso local que ameaça matá-lo, caso não apresente 50 "pérolas" dentro de 72 horas. Randall "Memphis" Raines vai ter de regressar ao trabalho, mas a polícia está de olho nele, e os bandos de gangs rivais também. Temos assim uma corrida contra relógio, com o suspense mantido pela presença de olhos indiscretos postos sobre o "herói". Randall tem de conseguir os carros dentro do prazo limite, e iludir a vigilância da polícia, além de se confrontar com os rivais da zona. Os donos dos carros são o obstáculo de menor importância. Roubados de dentro de garagens, stands, residências, à porta de hotéis, ou mesmo do parque da polícia, as poderosas máquinas lá vão seguindo o seu percurso, até ao desafio final, um Ford Mustang, que é uma espécie de ave de mau agoiro para Randall, que nunca conseguira furtar um sem problemas. Desta feita não será diferente.
Os filmes de grandes golpadas fizeram época. Este é apenas mais um. Rodado com ligeireza e agilidade, sem grande empenho pessoal, uma interpretação escorreita de um bom naipe de actores, onde avultam Nicholas Cage, Robert Duval e a bela Angelina Jolie, ali metida a martelo, para desgraça do filme e prazer dos nossos olhos. De resto, ver ou não ver “60 Segundos” é igual. Tal como os proprietários dos veículos fanados, os espectadores também não têm muito a ver com o filme - desde que paguem o bilhete e assegurem o bom funcionamento da indústria.

*** 60 SEGUNDOS (Gone in Sixty Seconds), de Dominic Sena (EUA; 2000), com Nicolas Cage (Randall "Memphis" Raines), Giovanni Ribisi (Kip Raines), Angelina Jolie (Sara "Sway" Wayland), T.J. Cross (Mirror Man), William Lee Scott (Toby), Scott Caan (Tumbler), James Duval (Freb), Will Patton (Atley Jackson), Delroy Lindo (Detective Roland Castlebeck), Timothy Olyphant (Detective Drycoff), Chi McBride (Donny Astricky), Robert Duvall (Otto Halliwell), Christopher Eccleston (Raymond Calitri), Vinnie Jones (The Sphinx), Grace Zabriskie (Helen Raines), etc. 117 min; M/ 12 anos.

ANGELINA JOLIE
Angelina Jolie Voight nasceu em Los Angeles, a 4 de Junho de 1975, sendo filha do actor Jon Voight e de Marcheline Bertrand. Estudou na Attended Beverly Hills High School e na MET Theatre Ensemble, em aulas de cinema em Nova Iorque. É formada em cinema pela New York University. Passou ainda pelo Lee Strasberg Theatre Institute, tendo participado em diversas produções.
Como modelo profissional desfilou nas passerelles de London, New York e Los Angeles, aparencendo também como actriz em vídeo clips de alguns cantores, como Meat Loaf, Lenny Kravitz, Antonello Venditti e The Lemonheads. Surgiu em cinco filmes de estudantes da USC School of Cinema, todos dirigidos pelo seu irmão James Haven.
Em 1955 casou com Jonny Lee Miller, de quem se divorciou em 3 de Fevereiro de 1999, tendo voltado a casar em 5 de Maio de 2000, com o actor e realizador Billy Bob Thornton. No casamento com Johnny Lee Miller vestia umas calças de cabedal pretas e uma camisa branca, nas costas da qual pintou, com o seu próprio sangue, o nome do marido.
Tem a letra H tatuada no pulso esquerdo, numa referência às duas pessoas a quem está ligada e cujos nomes começam por H: o irmão, James Haven e Timothy Hutton. Fez a tatuagem no tempo em que namorava com Timothy (em 1999), mas desde que se separou dele, diz que é só por causa do irmão. Em 2000, Angelina e o irmão, por causa da forte ligação que mantêm, desmentiram publicamente os boatos que os declaravam envolvidos numa relação incestuosa.
É canhota e adora tatuagens. Tem também, no braço, uma tatuagem da frase de Tennesee Williams "Uma oração para os que têm um coração selvagem preso numa gaiola" e de um dragão, no cimo do braço direito, para além do símbolo japonês da morte, dois símbolos índios e uma cruz negra.
Colecciona facas e interessa-se por ciência mortuária. O seu sonho de criança era ser directora de funerais.
Eleita a mulher mais sexy do mundo pela revista sueca "Café", e "uma das 50 Pessoas Mais Bonitas do Mundo", para o "People Magazine" (em 2000).
A sua citação preferida: "Pai, tu és um grande actor, mas és ainda melhor pai."

Filmografia:
(personagens interpretadas, entre parentesis)
1982 - Lookin' to Get Out, de Hal Ashby (Tosh)
1993 - Cyborg 2: Glass Shadow, de Michael Schreoder (Cash)
1995 - Hackers, de Iain Softley (Kate Libby)
1996 - Love Is All There Is, de Joseph Bologna e Reneé Taylor (Gina Malacici)
1996 - Foxfire, de Annette Haywood-Carter (Margaret "Legs" Sadovsky)
1996 - Mojave Moon, de Kiven Dowling (Ellie)
1997 - Playing God, Andy Wilson (Claire)
1997 - George Wallace, de John Frankenheimer (Cornelia Wallace)
1997 - True Women, de Karen Arthur (Georgia Lawshe)
1998 - Gia, de Michael Cristofer (Gia Carangi)
1998 - Hell's Kitchen, de Tony Cinciripini (Gloria McNeary)
1998 - Playing by Heart, de Willima Carroll (Joan)
1999 - Pushing Tin, de Mike Newell (Mary Bell)
1999 - The Bone Collector, de Phillip Noice (Amelia Donaghy)
1999 - Girl, Interrupted (Vida Interrompida), de james Mangold (Lisa)
2000 - Gone in Sixty Seconds (60 segundos), de Dominic Sena (Sway)
2000 - Original Sin, de Michael Cristofer
2001 - Tomb Raider, de Simon West (Lara Croft)
2001 - Beyond Berders, de Oliver Stone
Prémios
Ganhou o Oscar de melhor actriz secundária em Março de 2000 pelo seu papel em "Girl Interupted". Premiada com o Gonden Globe e o SAG Award Outstanding para melhor actriz da serie de TV em Gia (1999), onde foi igualmente nomeada para o Emmy do ano. Em 1998, com o seu trabalho na mini-série George Wallace ganhou igualmente o Globo de Ouro e foi também nomeada para o Emmy da categoria.
in "A Bola", de 10.9.2000

GUY RITCHIE:
“PORCOS E DIAMANTES”


Guy Ritchie, realizador inglês, é a nova coqueluche do filme de "gangsters", na sua vertente de paródia ao género. Depois de se ter revelado em 1998, com "Lock, Stock and Two Smoking Barrels" (Um Mal Nunca vem Só), sua segunda película (a primeira data de 1995 e chamava-se "Hard Case", que desconhecemos até agora), regressa com "Snatch, Porcos e Diamantes", que de certa forma prolonga o estilo e as obsessões e acentua algumas das qualidades já pressentidas na obra anterior.
Estamos de novo no domínio do filme de acção e violência, muita acção e muita violência diga-se de passagem, mas a que o tom de paródia confere um estatuto diferente. Conceber um filme deste género não é fácil, e a maioria das tentativas fracassa, ou por desequilíbrio notório entre a acção e o humor, ou porque os responsáveis pela obra não acham o tom justo para a caricatura, que por definição tem de ser excessiva, mas por imposição de plausibilidade não pode ultrapassar certas regras. Guy Ritchie encontra aqui o equilíbrio tão necessário e o tom justo. As cenas de acção aceitam-se e acompanham-se enquanto tal, o humor funciona na perfeição, as figuras e as situações encontram a caracterização caricatural ajustada. As personagens são excessivas e burlescas, por vezes quase nos sentimos no meio de uma comédia dos "loucos anos 20", mas o tom resulta em pleno e o interesse a acompanhar o "suspense" da intriga não esmorece. Tudo reverte a favor do filme, ainda que a intriga, rudimentar por um lado, muito complexa por outro, seja quase o menos interessante neste projecto que se serve dela apenas como veículo para tudo o resto.
Um diamante sem preço, roubado na Holanda e trazido para Londres, onde um "gangster" americano o vem recolher, é a base donde parte "Snatch". Daí para a frente é sempre a somar, num ritmo galopante que não dá tréguas ao espectador. Várias quadrilhas se movimentam para roubar o diamante, umas às outras se atropelam (estão a ver o que quero dizer com a metáfora?) e o resultado final é uma carnificina sem quartel. Amontoam-se os cadáveres, cada um deles atingindo esse estado por métodos extremamente requintados, demostrando bem a criatividade dos seus autores. Numa Londres de "bas-fond", evoluem os marginais, que curiosamente são identificados com grupos étnicos muito precisos: negros, judeus, ciganos, emigrantes eslavos. Este "melting pot" não tem suspeita de racismo, funciona, muito pelo contrário, como alerta para a criação de "ghetos", e resulta muito divertido como ponto de partida para confrontos entre "gangs" rivais. Feios, porcos e maus, digladiam-se com ferocidade, esquartejam membros, promovem "barbeques" dentro de roulotes habitadas, alimentam porcos esfomeados com carne humana, mas no meio de tamanha barbárie, alguns conseguem assumir vestígios de humanidade e provocar alguma ternura no espectador, mercê de uma desarmante inocência. É a inocência dos simples, dos idiotas sem escrúpulos, porque nunca tiveram a oportunidade de os cultivar. Numa sociedade que é uma selva, a inocência não é deste mundo. Mas por vezes perpassa o perfume da nostalgia dessa inocência que nunca se conheceu.
Excelentes são os actores numa galeria de tipos inesquecíveis. Benicio del Toro é o ladrão do diamante, que acaba cedo e mal o seu percurso pela obra, ainda que parte do seu braço sobreviva algumas cenas, agarrado à mala que transporta o valioso diamante. O conhecido Dennis Farina, viaja de Nova Iorque para recolher a pedra preciosa, mas também não tem carreira fácil. Vinnie Jones é outro futebolista a saltar para o cinema, depois de Cantona (são velhos conhecidos, aliás!), aparecendo aqui num papel de assassino profissional de eficácia posta em causa. Brad Pitt, finalmente ("last, but not least!"), tem uma composição saborosa de cigano regila, boxeur nas horas vagas, e extremoso amante de um mãe demasiado volátil e incandescente. De resto, Brad Pitt parece que tomou o gosto da experiência de "Clube de Combate" e agora esfarrapa-se por um bom combate corpo a corpo. Aqui vai arrumando "boxeurs" profissionais e desafiando "bosses" da Mafia com a ligeireza de um inconsciente que passa as noites adormecido em álcool.
Resta o mais importante, a direcção de Guy Ritchtie, que vindo da publicidade e do "video clip", consegue uma realização nervosa, sincopada, vivendo de elipses monumentais. Dennis Farina atende o telefone em N.Y., dizem-lhe que tem um diamante à sua espera em Amsterdão, corta, plano de Dennis Farina no aeroporto, corta, plano de passaporte a ser carimbado, corta, plano de avião a sulcar os ares, corta, plano de Dennis Farina em Londres. Levei mais tempo a contar, que a acontecer no filme. Este ritmo vertiginoso poderia soar a falso, a artificio de estilo, mas Guy Ritchie consegue transformá-lo em algo de absolutamente coerente com todo o propósito do filme. Apesar de ser uma importação do caligrafismo da estética do "vídeo clip", o realizador torna-o adaptável à ficção, funcionando como um degrau mais da paródia a um estilo.
Muito se tem falado em Tarantino a propósito de "Snatch". Se existem pontos de contacto, sobretudo no desenho de algumas figuras, o tom é absolutamente diferente. Tarantino é retintamente americano, Guy Ritchie um inglês típico. O cómico é totalmente outro, e "Snatch" radica num humor negro britânico de tão belas tradições (quem não recorda "O Quinteto era de Cordas", entre outras obras primas do género?). A própria violência é diversa. Muito mais tensa em Tarantino, libertária e exorcitante em Ritchie.

***** SNATCH, PORCOS E DIAMANTES (Snatch), de Guy Ritchie (Inglaterra, 2000), Com Benicio Del Toro (Franky Four Fingers), Dennis Farina (Tio Avi), Vinnie Jones (Bullet Tooth Tony), Brad Pitt (One Punch' Mickey Oneil), Rade Serbedzija (Boris The Blade), Jason Statham (Turco), Alan Ford (Brick Top), etc. 104 minutos; M/ 16 anos. in "A Bola!", de 3.12.2000

CARLOS SAURA:
"GOYA EM BORDÉUS"


Com uma filmografia vasta e poderosa, Carlos Saura conta com algumas obras absolutamente essenciais na história do cinema, a que se deverá acrescentar a partir de agora este "Goya em Bordéus", uma das mais interessantes biografias de artistas que o cinema nos deu até hoje.
Para o seu filme, Carlos Saura vai encontrar Goya nos derradeiros dias da sua vida, doente, em Bordéus. Tendo a seu lado a filha Rosário, Goya lembra os momentos essenciais da sua existência, desde os tempos em que a sua maior ambição era ser "pintor da Corte" até à doença que o levaria à surdez, a sua paixão pela Duquesa de Alba (e o futuro assassinato desta, envenenada por rivalidades políticas), o exílio, as lutas pela liberdade e contra a tirania de Fernando VII, a concepção de algumas das suas obras mais importantes...
Este um dos aspectos mais interessantes e conseguidos deste filme plasticamente absolutamente fascinante. Saura procura mostrar como se produziram alguns dos momentos desta obra pictórica avassaladora. Goya possuído pelos demónios da mente, criando as "pinturas negras" na sua Quinta do Surdo", nos arredores de Madrid, a sua relação de completa paixão e desejo por Cayatana, os fuzilamentos de Moncloa, os Caprichos, são momentos que nos surgem não "explicados" mas evocados, sugeridos, apontados. Saura utiliza uma técnica, em que se revela de grande maestria (não só aqui, mas também noutras obras, nomeadamente em Tango), basicamente cénica (poucas são as cenas filmadas em exteriores, quase todas o são em estúdio), em que os telões de pano substituindo as paredes permitem efeitos de iluminação que isolam espaços e os associam de forma magnifica. Goya vindo do seu quarto por um corredor iluminado, que depois se apaga para dar lugar à iluminação da sala onde sua filha estuda música é um exemplo notável, mas o filme está pejado de exemplos idênticos.
A colaboração de Carlos Saura com Vittorio Storaro, o fotógrafo italiano de Bertolucci e Coppola, tem-se revelado notável e aqui surge mais um exemplo, muito bem secundado pelo guarda roupa e direcção artística, e a magnifica interpretação de um assombroso Francisco Rabal. Mas também José Coronado (Goya, mais jovem), Daphne Fernández (Rosario) e Maribel Verdú (Duquesa de Alba) se mostram à altura do empreendimento, onde aparecem ainda os prodigiosos actores do El Fura del Baus, grupo de teatro catalão de uma inventiva prodigiosa e que constróem magnificas cenas de multidão.

****** GOYA EM BORDÉUS (Goya en Burdeos), de Carlos Saura (Espanha, 1999), Com Francisco Rabal (Goya), José Coronado (Goya, mais jovem), Daphne Fernández (Rosario), Maribel Verdú (Duquesa de Alba), Eulalia Ramón (Leocadia), Joaquín Climent, Cristina Espinosa, José María Pou, Saturnino García, Carlos Hipólito, etc. 102 min; M/ 12 anos.
GOYA
Francisco Goya y Lucientes (1746-1828), nascido em Fuendetodos, Saragoça (Espanha), viria a falecer no exílio em Bordéus (França), depois de uma vida acidentada e de uma carreira como pintor que lhe permitiu ficar na História como um dos maiores artistas de sempre, um homem que antecipou e preparou a eclosão de toda a arte moderna. Tendo Velasquez e Rembrant como mestres confessados ("aceita as influências certas, mas procura encontrar o teu próprio caminho", diz Goya à sua filha Rosário), Goya abre os caminhos da arte ao impressionismo, ao expressionismo, inclusive à arte abstracta e ao conceptualismo. Até aos 46 anos andou perto da arte oficial, como retratista da corte e autor de várias encomendas religiosas. Em 1792, vítima de uma doença grave, fica surdo e este acontecimento irá marcar profundamente a sua obra, já que ela se interioriza, indo buscar aos mundos do inconsciente e aos pesadelos da mente inspiração para obras como "Os Horrores da Guerra", "Desastres da Guerra", "Tauromaquia", "Disparates", "Pinturas Negras", alem de telas como "El 2 de Mayo", "La Lucha de los Mamelucos" ou "Los Fusilamentos de Moncloa", todos eles com uma forte componente de crítica ás injustiças sociais e à brutalidade da tirania e da opressão. Dois quadros, "Maja Vestida" e "Maja Desnuda", assinalam a grande paixão da sua vida, a Duquesa de Alba, também conhecida por Cayatana, outra das fontes de inspiração e mulher cuja recordação o acompanharia até ao fim da vida.

CARLOS SAURA
Carlos Saura, nascido a 4 de Janeiro de 1932, em Huesca, Espanha, é um dos chefes de fila do cinema espanhol. Pertence a um geração intermédia, entre a que nos deu Luis Buñuel, Luis Berlanga ou Juan Bardem, e a que revelaria Pedro Almodovar. Saura surge na longa metragem nos anos 60, com filmes como Los Golfos ou A Caça, sua obra de maior projecção nestes anos quentes da ditadura franquista.
Nos últimos tempos tem revisitado alguns aspectos maiores da mitologia espanhola, sobretudo no campo da música, particularmente a partir de 1983, com a fabulosa adaptação de Carmen, a que se seguiram Los Zancos, El Amor Bruxo, El Dorado, Ay Carmela, Sevillanas, Flamengo, Taxi, Pajarico, Tango e finalmente em 1999, Goya em Bordéus. Deve ser um dos cineastas espanhóis mais premiados de sempre, ainda que nunca tivesse conquistado um Oscar, para que já esteve todavia nomeado.

Filmografia como realizador:

1999 - GOYA EN BURDEOS (Goya em Bordéus)
1998 - ESA LUZ!
1998 - TANGO (Tango)
1998 - PAJARICO
1996 - TAXI (Taxi)
1995 - FLAMENCO
1993 -¡DISPARA!
1992 - SEVILLANAS
1990 -¡AY, CARMELA! (Ay, Carmela)
1989 - LA NOCHE OSCURA
1988 - EL DORADO (El Dorado)
1986 - EL AMOR BRUJO
1984 - LOS ZANCOS
1983 - CARMEN (Camen)
1982 - ANTONIETA
1982 - DULCES HORAS
1981 - DEPRISA, DEPRISA
1981 - BODAS DE SANGRE (Bodas de sangue)
1979 - MAMÁ CUMPLE CIEN AÑOS
1978 - OJOS VENDADOS
1977 - ELISA, VIDA MÍA (Memórias de Elisa)
1976 - CRÍA CUERVOS (Cria Corvos)
1974 - LA PRIMA ANGÉLICA (A Prima Angélica)
1973 - ANA Y LOS LOBOS (Ana e os Lobos)
1970 - EL JARDÍN DE LAS DELICIAS (O Jardim das Delicias)
1969 - LA MADRIGUERA (A Colmeia)
1968 - STRESS-ES TRES-TRES (Em Três um é Demais)
1967 - PEPPERMINT FRAPPÉ (Ideia Fixa)
1966 - LA CAZA (A Caça)
1964 - LLANTO POR UN BANDIDO (A Carga dos Rebeldes)
1962 - LOS GOLFOS
1958 - CUENCA
1957 - LA TARDE DEL DOMINGO
1956 - EL PEQUEÑO RÍO MANZANARES
in "A Bola", de 9.9.2000


WILLIAM FRIEKIN:
"COMPROMISSO DE HONRA"


Há já alguns anos que nada se sabia, ou muito pouco se via em écrans portugueses, de William Friedkin, um cineasta norte americano que nos anos 70 nos deu "O Exorcita", "French Connection", "The Boys in the Band", e na década seguinte ainda conseguiu ser notado em "Cruising" ou 2Viver e Morrer em LA". Depois foi mais ou menos o silêncio e a travessia do deserto, voltando agora com "Compromisso de Honra", um "filme de tribunal", que aborda um caso da diplomacia e da intervenção militar dos EUA em terras do Próximo Oriente.
O Coronel Hayes Hodges (Tommy Lee Jones) e o Coronel Terry L. Childers (Samuel L. Jackson) foram colegas na guerra do Vietname, onde atravessaram os maiores perigos. Childers salvou mesmo a vida de Hodges numa batalha perdida. Anos depois, Hodges que ficou ferido e se viu colocado atrás de uma secretária, é homenageado por passar à vida civil. Por essa altura, Childers é chamado a intervir no Ieman, para libertar o Embaixador dos EUA, que se encontra enclausurado na Embaixada, rodeado pelo povo amotinado, que ataca com armas de todo o género e slogans anti americanos. A situação é crítica, Childers tem de intervir, dá ordem de atirar sobre os manifestantes e o resultado é um massacre que se salda por várias dezenas de mortos entre civis. Massacre aproveitado pelo governo do Ieman e pela comunicação social internacional para uma campanha contra os EUA.
Aqui a situação torna-se muito clara para o governo: arranjar um bode expiatório (Childers), levá-lo a tribunal militar, e esperar que as coisas amainem com o crucificação de um militar, mesmo que para tanto seja necessário destruir provas. Hodges, que é advogado, é chamado por Childers para ser seu defensor, e o resto é o que se passa no tribunal. Nada de muito excitante, apenas um filme bem oleado e bem interpretado por actores acima de toda a suspeita. Mas de William Friedkin fica-se à espera de melhores tempos.

**** COMPROMISSO DE HONRA (Rules of Engagement), de William Friedkin (EUA, 2000), com Tommy Lee Jones (Coronel Hayes Hodges), Samuel L. Jackson (Coronel Terry L. Childers), Ben Kingsley (Embaixador Mourain), Blair Underwood (Capitão Lee), Anne Archer (Mrs. Mourain), Guy Pearce (Major Mark Biggs), Philip Baker Hall (General H. Lawrence Hodges), etc. 128 min; M/ 12 anos. in "A Bola", de 1.10.2000

WOODY ALLEN:
"ATRAVÉS DA NOITE"


Novo filme de Woody Allen e nova incursão pelo seu universo mais íntimo, ainda que agora afastando-se das obras auto-biográficas passadas na actualidade como "Annie Hall", "Manhattan", "Hanna e as Irmãs", "Maridos e Mulheres2, entre muitas outras. Em "Através da Noite" estamos em pleno universo de Woody Allen mas num outro registo, que já tem uma tradição forte na sua vasta filmografia. "Sweet and Lowdown" inscreve-se numa via que tem como antepassados alguns dos primeiros títulos de Woody Allen como realizador, "O Inimigo Público" ou "Bananas", mas que depois prossegue em filmes como "Zelig" ou "O Agente da Broadway". São filmes que se assumem como falsos docudramas, uma espécie de documentários em busca de personagens inexistentes, mas que a plausibilidade das referências, a intervenção dos depoimentos de figuras reais, a própria força do protagonista conferem ao registo um tom de tal forma sincero e "real" que o espectador é apanhado num terreno movediço, em que por vezes chega mesmo a duvidar da existência ou não do que lhe é apresentado.
Emmet Ray (interpretado por um excelente Sean Penn) é um guitarrista de jazz, "o segundo melhor depois do lendário cigano Django Reinhardt" (este sim com existência real). Estamos na América dos anos 30, o que coloca esta excelente reconstituição de época na linha de outro grupo de filmes da filmografia de Woody Allen que se aproximam também do mundo do espectáculo: "Os Dias da Rádio", "Rosa Púrpura do Cairo" ou "Balas sobre a Broadway". Com base na personagem de Emmet Ray, Woody Allen vai recriar todo um período da história americana, mas vai essencialmente erguer uma figura que reúne um pouco de várias outras personagem que cimentaram a lenda do jazz norte americano.
A vida de artista algo conflituoso, temperamental, ligado ao submundo do crime, dependente da bebida e de uma vida sentimental acidentada, tudo isso se encontra nesta "biografia" divertida e irónica, onde Emmet se mostra obcecado por vários temas que lhe são queridos, e que o acompanham como a guitarra donde extrai os sons que encantam as plateias. Para lá dessa obsessão pelo "fabuloso" Django Reinhardt, personagem que o leva ao desmaio sempre que com ele se cruza e o põe a chorar de comoção sempre que ouve as suas gravações, temos ainda a sua predilecção por lixeiras, onde abate ratazanas a tiro de revólver, e por ver passar os comboios. Há ainda o guarda roupa e os carros de luxo. Emmet gosta também de se mostrar independente perante as mulheres, e duro frente aos homens. Neste aspecto, as suas relações com duas mulheres são marcantes. Primeiro com Hattie (uma presença admirável de uma nova grande actriz em ascensão, Samantha Morton), uma empregada de lavandaria muda, que o passa a acompanhar para toda a parte, come como uma esfomeada e gosta de "rasgar o papel das prendas" e Blanche (outra boa composição de Uma Thurman), que o troca por um mafioso, guarda-costa do dono de uma cabaret onde Emmet actua. Neste episódio com Blanche há uma das melhores sequências do filme, com várias testemunhas dando opiniões contraditórias sobre o que teria realmente existido com Emmet e o seu desfecho de romance com a única mulher com quem casara.
Como surgiu assim desaparece Emmet Ray, dissipando-se numa nuvem de nevoeiro. Os depoimentos dos estudiosos e conhecedores da vida e da obra de Emmet arriscam explicações, mas a verdade é que Emmet desapareceu, momentos antes da fusão em negro com que o filme termina. Uma película excelente, uma comédia discreta, misturando a ternura do olhar do cineasta com a segurança do metier e a ironia fina do escritor. A vida difícil dos anos 30, atravessada pela grande crise económica nos EUA, é muito bem dada, através de pequenos apontamentos do quotidiano, como esse concurso para cantores e músicos amadores, onde se intromete Emmet Ray, e que é um fabuloso momento de comédia, sarcástica, mas de uma inocência desarmante.
Woody Allen ao seu melhor nível, como sempre: um dos grandes cineastas da nossa contemporaneidade.

****** ATRAVÉS DA NOITE (Sweet and Lowdown), de Woody Allen (EUA; 1999), com Sean Penn (Emmet Ray), Samantha Morton (Hattie), John Waters (Mr. Haynes), Uma Thurman (Blanche), Vincent Guastaferro (Sid Bishop), Douglas McGrath (ele próprio), Woody Allen (ele próprio), Ben Duncan (ele próprio), etc. 95 min; M/ 12anos. / in "A Bola", de 1.10.2000

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