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Uma recolha de críticas da autoria de Lauro António, aparecidas em diversas publicações portuguesas.

sábado, junho 24, 2006

LARS VON TRIER:
“DANCER IN THE DARK”


Há filmes que se amam ou se detestam. “Dancer in the Dark” poderá ser um deles. A própria essência da obra a isso convida. Por um lado, o musical não é nos dias de hoje um género popular. Por outro lado, que dizer de um musical que parte (ou se confronta, plano a plano) de um hiper realismo de situações, que roça o construtivismo soviético e o neo-realismo italiano? Se o musical por definição aponta para a criação de um clima de felicidade e alegria quase artificial, que pensar de um musical que subverte por completa as regras e nos mostra uma condenada à morte a cantar uma área de “Música no Coração”, momentos antes de ser executada? Lars Von Trier estica a corda até ao impossível, e o resultado só pode ser mesmo esse: ou se ama apaixonadamente este filme de uma candura e de uma simplicidade desarmantes, ou se detesta este irrealismo que ronda o despudor. Pessoalmente, acho “Dancer in the Dark” uma obra- prima, um daqueles momentos únicos na história do cinema, em que o cinema nos leva a acreditar na vida, nos outros, na arte e em nós próprios.
Lars Von Trier, dinamarquês, tem uma filmografia não muito extensa, mas particularmente interessante, e que vem desde os tempos de “O Elemento do Crime” (1984), até ao seu recente “Os Idiotas” (1998), filme com o qual aderira ao movimento Dogma 85. Entre ambos, ficam “Epidemia” (87), “Europa” (91) “O Reino”, I e II e esse magnifico “Ondas de Paixão” (96). Assumindo-se como um dos mais pessoais e sugestivos "autores" europeus, Lars Von Trier tem uma formação invulgar que lhe irá marcar a trajectória pessoal de forma absoluta, o que “Dancer in the Dark” confirma de forma exemplar. Filho de pais comunistas, adopta nas suas últimas obras um despojamento bressoniano e uma evidente vocação católica. Homem de um rebuscamento de estilo que ronda o caligrafismo em “Europa”, afasta-se desse lado de designer para re-inventar o cinema na sua essência, rodando em vídeo, com uma liberdade de movimentos inesperada.
Quando Lars von Trier começou a imaginar “Dancer in the Dark” pediu à cantora e compositora islandesa Bjork para esta compor as canções para esta película. Depois, pediu-lhe também para interpretar a personagem central, Selma, uma exilada checoslovaca, de trinta e tal anos, mãe solteira de um filho de 12 anos, que vive numa América rural, empregada numa fábrica de moldes de metal. Selma tem uma vida desgraçada, se vista por olhos realistas, mas ela ama os musicais americanos (motivo certamente que a terá levado a escolher os EUA como país de residência) e possui um segredo que guarda só para si: está quase a cegar, vítima de uma doença hereditária, que irá também atacar o filho, se entretanto não for operado. Selma recolhe tudo quanto ganha, para permitir a operação do filho. Esse é o seu segredo bem guardado. A sua única alegria são os ensaios de “Música no Coração” numa companhia de teatro de amadores.
Cada vez mais próxima da cegueira completa, Selma trabalha, trabalha, trabalha, na fábrica, no turno de dia, em casa, de novo na fábrica, agora também no turno da noite. A música e a dança são a fuga que lhe permite suportar a realidade (tal como o cinema o era também para a personagem interpretada por Mia Farrow em “A Rosa Púrpura do Cairo”). Mas aqui a música e a dança nascem da própria realidade que circunda Selma. Enquanto trabalha na fábrica, sempre com um sorriso aberto no seu rosto, Selma vai ouvindo os ruídos compassados das máquinas, dos passos, das vozes, e com esses ruídos vai organizando a sua música, as suas danças, o seu mundo interior onde se refugia meigamente. Este diálogo que se estabelece entre Selma e a música é extremamente interessante de analisar, porque funciona a dois níveis: ela recupera os sons ouvidos na realidade, para os transformar em música, mas ela também transporta a música para a realidade, quer no plano do desejo (muitas das sequências cantadas e dançadas são projecções imaginadas por Selma), quer no do real (são os ecos dos musicais americanos, as vozes de Fred Astaire e Gene Kelly, o sapateado de um tal Oldrich Novy, actor checo que ela recorda da infância, e cujo nome empresta ao pai e ao filho, que permitem a Selma suportar o insuportável).
“Dancer in the Dark” não esquece que o musical também já se cruzara com o melodrama, nomeadamente na Europa, onde o nome de Jacques Demy não pode ser esquecido, em obras como “Une Chambre en Ville”, “As Demoiselles de Rochefort” ou “Os Chapéus de Chuva de Cherbourg”, com os quais Catherine Deneuve estabelece uma ligação. Só deste modo se compreende a presença da actriz neste filme. Ela é o anjo da guarda de Selma, saído directamente dos musicais de Demy. Esta a citação mais óbvia, mas evidentes são também as homenagens (e inspirações) directas a “West Side Story” e sobretudo a “Sete Noivas para Sete Irmãos” (num dos melhores "números" musicais desta obra fascinante).
Rodada em vídeo, “Dancer in the Dark” retoma algumas das prescrições do Dogma 85, mas com uma qualidade e intencionalidade bem diferente das vistas por exemplo em “A Festa”. Aqui, Lars Von Trier procura a liberdade de uma câmara que não encene demasiado, que mantenha a espontaneidade, que surpreenda. Como nessa sequência que relembra “Seven Brides for Seven Brothers”, rodada com cem câmaras de vídeo, o que impossibilitava, nas palavras do próprio realizador, encenar a cena para todas as câmaras, permitindo algumas surpresas bem vindas.
Bjork, enquanto Selma, é uma revelação. Não parece que a cantora queira prosseguir a carreira de actriz, e cremos que fará bem. Este é o papel de uma vida. Ela não voltará a ter outra oportunidade ( e se tiver, será para se repetir). Mas a Selma de Bjork é uma figura inesquecível na história do cinema, a partir de agora. A sua alegria de viver, que transparece de cada olhar, de cada gesto, a sua ingenuidade, a sua generosa entrega, o seu amor, a timidez e a exuberância que a habitam em diferentes tempos, tudo faz desta personagem uma mulher ímpar, um ser humano como há muito se não via no cinema. A seu lado, David Morse, Peter Stormare e Joel Grey são outros tantos motivos de recomendação.
Raras vezes se poderá assistir a um melodrama tão negro. Raras vezes de um melodrama tão desesperado se sai com tanta esperança e tanta fé no Homem. Lars Von Trier e Bjork construíram o milagre. Numa perspectiva católica, pode mesmo falar-se em milagre. Cinematograficamente, também (apesar do vídeo!).

DANCER IN THE DARK (Dancer in the Dark), de Lars Von Trier (Dinamarca, 2000), com Björk (Selma), Catherine Deneuve (Kathy), David Morse (Bill), Peter Stormare (Jeff), Udo Kier (Dr. Porkorny), Joel Grey (Oldrich Novy), Vincent Paterson (Samuel), Cara Seymour (Linda), Jean-Marc Barr (Norman), etc. 139 minutos; M/ 12 anos. In “A Bola” de 5.11.2000

1 Comments:

At 1:06 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Excelente comentário, excelente ideia de colocar num blog as suas críticas. Devem ser centenas e centenas, mas não desista. Venham elas, desde os seus tempos no Diário de Lisboa. Será um arquivo a não perder e a justificar certamente posterior publicação em livro. Um abraço de uma admiradora de ha muito.
MªCéu

 

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