LA_Arquivo

Uma recolha de críticas da autoria de Lauro António, aparecidas em diversas publicações portuguesas.

sábado, junho 24, 2006

GUY RITCHIE:
“PORCOS E DIAMANTES”


Guy Ritchie, realizador inglês, é a nova coqueluche do filme de "gangsters", na sua vertente de paródia ao género. Depois de se ter revelado em 1998, com "Lock, Stock and Two Smoking Barrels" (Um Mal Nunca vem Só), sua segunda película (a primeira data de 1995 e chamava-se "Hard Case", que desconhecemos até agora), regressa com "Snatch, Porcos e Diamantes", que de certa forma prolonga o estilo e as obsessões e acentua algumas das qualidades já pressentidas na obra anterior.
Estamos de novo no domínio do filme de acção e violência, muita acção e muita violência diga-se de passagem, mas a que o tom de paródia confere um estatuto diferente. Conceber um filme deste género não é fácil, e a maioria das tentativas fracassa, ou por desequilíbrio notório entre a acção e o humor, ou porque os responsáveis pela obra não acham o tom justo para a caricatura, que por definição tem de ser excessiva, mas por imposição de plausibilidade não pode ultrapassar certas regras. Guy Ritchie encontra aqui o equilíbrio tão necessário e o tom justo. As cenas de acção aceitam-se e acompanham-se enquanto tal, o humor funciona na perfeição, as figuras e as situações encontram a caracterização caricatural ajustada. As personagens são excessivas e burlescas, por vezes quase nos sentimos no meio de uma comédia dos "loucos anos 20", mas o tom resulta em pleno e o interesse a acompanhar o "suspense" da intriga não esmorece. Tudo reverte a favor do filme, ainda que a intriga, rudimentar por um lado, muito complexa por outro, seja quase o menos interessante neste projecto que se serve dela apenas como veículo para tudo o resto.
Um diamante sem preço, roubado na Holanda e trazido para Londres, onde um "gangster" americano o vem recolher, é a base donde parte "Snatch". Daí para a frente é sempre a somar, num ritmo galopante que não dá tréguas ao espectador. Várias quadrilhas se movimentam para roubar o diamante, umas às outras se atropelam (estão a ver o que quero dizer com a metáfora?) e o resultado final é uma carnificina sem quartel. Amontoam-se os cadáveres, cada um deles atingindo esse estado por métodos extremamente requintados, demostrando bem a criatividade dos seus autores. Numa Londres de "bas-fond", evoluem os marginais, que curiosamente são identificados com grupos étnicos muito precisos: negros, judeus, ciganos, emigrantes eslavos. Este "melting pot" não tem suspeita de racismo, funciona, muito pelo contrário, como alerta para a criação de "ghetos", e resulta muito divertido como ponto de partida para confrontos entre "gangs" rivais. Feios, porcos e maus, digladiam-se com ferocidade, esquartejam membros, promovem "barbeques" dentro de roulotes habitadas, alimentam porcos esfomeados com carne humana, mas no meio de tamanha barbárie, alguns conseguem assumir vestígios de humanidade e provocar alguma ternura no espectador, mercê de uma desarmante inocência. É a inocência dos simples, dos idiotas sem escrúpulos, porque nunca tiveram a oportunidade de os cultivar. Numa sociedade que é uma selva, a inocência não é deste mundo. Mas por vezes perpassa o perfume da nostalgia dessa inocência que nunca se conheceu.
Excelentes são os actores numa galeria de tipos inesquecíveis. Benicio del Toro é o ladrão do diamante, que acaba cedo e mal o seu percurso pela obra, ainda que parte do seu braço sobreviva algumas cenas, agarrado à mala que transporta o valioso diamante. O conhecido Dennis Farina, viaja de Nova Iorque para recolher a pedra preciosa, mas também não tem carreira fácil. Vinnie Jones é outro futebolista a saltar para o cinema, depois de Cantona (são velhos conhecidos, aliás!), aparecendo aqui num papel de assassino profissional de eficácia posta em causa. Brad Pitt, finalmente ("last, but not least!"), tem uma composição saborosa de cigano regila, boxeur nas horas vagas, e extremoso amante de um mãe demasiado volátil e incandescente. De resto, Brad Pitt parece que tomou o gosto da experiência de "Clube de Combate" e agora esfarrapa-se por um bom combate corpo a corpo. Aqui vai arrumando "boxeurs" profissionais e desafiando "bosses" da Mafia com a ligeireza de um inconsciente que passa as noites adormecido em álcool.
Resta o mais importante, a direcção de Guy Ritchtie, que vindo da publicidade e do "video clip", consegue uma realização nervosa, sincopada, vivendo de elipses monumentais. Dennis Farina atende o telefone em N.Y., dizem-lhe que tem um diamante à sua espera em Amsterdão, corta, plano de Dennis Farina no aeroporto, corta, plano de passaporte a ser carimbado, corta, plano de avião a sulcar os ares, corta, plano de Dennis Farina em Londres. Levei mais tempo a contar, que a acontecer no filme. Este ritmo vertiginoso poderia soar a falso, a artificio de estilo, mas Guy Ritchie consegue transformá-lo em algo de absolutamente coerente com todo o propósito do filme. Apesar de ser uma importação do caligrafismo da estética do "vídeo clip", o realizador torna-o adaptável à ficção, funcionando como um degrau mais da paródia a um estilo.
Muito se tem falado em Tarantino a propósito de "Snatch". Se existem pontos de contacto, sobretudo no desenho de algumas figuras, o tom é absolutamente diferente. Tarantino é retintamente americano, Guy Ritchie um inglês típico. O cómico é totalmente outro, e "Snatch" radica num humor negro britânico de tão belas tradições (quem não recorda "O Quinteto era de Cordas", entre outras obras primas do género?). A própria violência é diversa. Muito mais tensa em Tarantino, libertária e exorcitante em Ritchie.

***** SNATCH, PORCOS E DIAMANTES (Snatch), de Guy Ritchie (Inglaterra, 2000), Com Benicio Del Toro (Franky Four Fingers), Dennis Farina (Tio Avi), Vinnie Jones (Bullet Tooth Tony), Brad Pitt (One Punch' Mickey Oneil), Rade Serbedzija (Boris The Blade), Jason Statham (Turco), Alan Ford (Brick Top), etc. 104 minutos; M/ 16 anos. in "A Bola!", de 3.12.2000

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