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Uma recolha de críticas da autoria de Lauro António, aparecidas em diversas publicações portuguesas.

sábado, junho 24, 2006

WOODY ALLEN:
"ATRAVÉS DA NOITE"


Novo filme de Woody Allen e nova incursão pelo seu universo mais íntimo, ainda que agora afastando-se das obras auto-biográficas passadas na actualidade como "Annie Hall", "Manhattan", "Hanna e as Irmãs", "Maridos e Mulheres2, entre muitas outras. Em "Através da Noite" estamos em pleno universo de Woody Allen mas num outro registo, que já tem uma tradição forte na sua vasta filmografia. "Sweet and Lowdown" inscreve-se numa via que tem como antepassados alguns dos primeiros títulos de Woody Allen como realizador, "O Inimigo Público" ou "Bananas", mas que depois prossegue em filmes como "Zelig" ou "O Agente da Broadway". São filmes que se assumem como falsos docudramas, uma espécie de documentários em busca de personagens inexistentes, mas que a plausibilidade das referências, a intervenção dos depoimentos de figuras reais, a própria força do protagonista conferem ao registo um tom de tal forma sincero e "real" que o espectador é apanhado num terreno movediço, em que por vezes chega mesmo a duvidar da existência ou não do que lhe é apresentado.
Emmet Ray (interpretado por um excelente Sean Penn) é um guitarrista de jazz, "o segundo melhor depois do lendário cigano Django Reinhardt" (este sim com existência real). Estamos na América dos anos 30, o que coloca esta excelente reconstituição de época na linha de outro grupo de filmes da filmografia de Woody Allen que se aproximam também do mundo do espectáculo: "Os Dias da Rádio", "Rosa Púrpura do Cairo" ou "Balas sobre a Broadway". Com base na personagem de Emmet Ray, Woody Allen vai recriar todo um período da história americana, mas vai essencialmente erguer uma figura que reúne um pouco de várias outras personagem que cimentaram a lenda do jazz norte americano.
A vida de artista algo conflituoso, temperamental, ligado ao submundo do crime, dependente da bebida e de uma vida sentimental acidentada, tudo isso se encontra nesta "biografia" divertida e irónica, onde Emmet se mostra obcecado por vários temas que lhe são queridos, e que o acompanham como a guitarra donde extrai os sons que encantam as plateias. Para lá dessa obsessão pelo "fabuloso" Django Reinhardt, personagem que o leva ao desmaio sempre que com ele se cruza e o põe a chorar de comoção sempre que ouve as suas gravações, temos ainda a sua predilecção por lixeiras, onde abate ratazanas a tiro de revólver, e por ver passar os comboios. Há ainda o guarda roupa e os carros de luxo. Emmet gosta também de se mostrar independente perante as mulheres, e duro frente aos homens. Neste aspecto, as suas relações com duas mulheres são marcantes. Primeiro com Hattie (uma presença admirável de uma nova grande actriz em ascensão, Samantha Morton), uma empregada de lavandaria muda, que o passa a acompanhar para toda a parte, come como uma esfomeada e gosta de "rasgar o papel das prendas" e Blanche (outra boa composição de Uma Thurman), que o troca por um mafioso, guarda-costa do dono de uma cabaret onde Emmet actua. Neste episódio com Blanche há uma das melhores sequências do filme, com várias testemunhas dando opiniões contraditórias sobre o que teria realmente existido com Emmet e o seu desfecho de romance com a única mulher com quem casara.
Como surgiu assim desaparece Emmet Ray, dissipando-se numa nuvem de nevoeiro. Os depoimentos dos estudiosos e conhecedores da vida e da obra de Emmet arriscam explicações, mas a verdade é que Emmet desapareceu, momentos antes da fusão em negro com que o filme termina. Uma película excelente, uma comédia discreta, misturando a ternura do olhar do cineasta com a segurança do metier e a ironia fina do escritor. A vida difícil dos anos 30, atravessada pela grande crise económica nos EUA, é muito bem dada, através de pequenos apontamentos do quotidiano, como esse concurso para cantores e músicos amadores, onde se intromete Emmet Ray, e que é um fabuloso momento de comédia, sarcástica, mas de uma inocência desarmante.
Woody Allen ao seu melhor nível, como sempre: um dos grandes cineastas da nossa contemporaneidade.

****** ATRAVÉS DA NOITE (Sweet and Lowdown), de Woody Allen (EUA; 1999), com Sean Penn (Emmet Ray), Samantha Morton (Hattie), John Waters (Mr. Haynes), Uma Thurman (Blanche), Vincent Guastaferro (Sid Bishop), Douglas McGrath (ele próprio), Woody Allen (ele próprio), Ben Duncan (ele próprio), etc. 95 min; M/ 12anos. / in "A Bola", de 1.10.2000

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