LA_Arquivo

Uma recolha de críticas da autoria de Lauro António, aparecidas em diversas publicações portuguesas.

sábado, junho 24, 2006

NEIL LABUTTE:
“BETTY”

“Betty” ficará certamente, e desde já, entre os melhores filmes estreados em Portugal neste ano de 2001. Trata-se efectivamente de uma belíssima comédia de humor negro, partindo de um excelente argumente (melhor argumento no festival de Cannes de 2000) e fabulosamente interpretada por Renée Zellweger (Globo de Ouro para a melhor actriz de comédia).
A complexa relação entre a realidade e a ficção é a base desta obra, que tem por protagonista Betty, uma empregada de café que vive obcecada por uma “soap opera” (uma telenovela diária, das que se produzem nos EUA). “A Reason to Love”, assim se chama a telenovela em causa, passa-se no universo dos hospitais (“Hospital Central” parece ser a inspiração) e tem o Dr. David Ravell como herói abnegado da Humanidade e fonte de inspiração para as fãs que se multiplicam pelos quatro cantos do continente americano. Como é o caso de Betty, que vive no Kansas, casada com um brutamontes, vendedor de automóveis, que trafica drogas e vai atraiçoando a mulher com quem pode. Betty ajustou a sua vida ao horário da telenovela, e estabelece um equilíbrio notável entre a visão do romance que a televisão oferece e a distribuição de café pelas chávenas que se dispõem no balcão. A adesão à telenovela é a sua maneira de fugir a uma realidade dura e infeliz, onde não se sente realizada. O que relembra “A Rosa Púrpura do Cairo”, de Woody Allen, onde Mia Farrow se comportava de forma idêntica, tendo o cinema como referência. Estávamos então nos anos 30, na época da grande depressão económica nos EUA, o cinema era o fenómeno de massas, e a grande “fábrica dos sonhos”. Agora estamos em 2000, numa América de “milagre económico” (os anos Clinton) e a TV é o grande portal da utopia.
O instável equilíbrio conseguido por Betty, irá sofrer um forte revés, no dia em que vê o marido ser abatido por uma parelha de assassinos contratados (Charlie e Weslley), que o escalpelizam à boa maneira índia, antes de o abaterem a tiro. Betty, em lugar de assumir a realidade, medonha, refugia-se na ficção e parte para Los Angeles em busca do seu príncipe encantado que, no episódio da noite, dissera que andava “à procura da mulher dos seus sonhos”. Betty julga que é essa mulher, e vai ao encontro do imaginário Hospital, que afinal irá descobrir reconstruído em paredes de cenário num estúdio de televisão de Hollywood. Mas até enfrentar a realidade, a empregada de café passa por enfermeira e confronta-se com o Dr. David Ravell numa recepção de beneficência que deixa toda a gente estupefacta.
O argumento é extremamente interessante e inteligente, quer na construção quer nas referências para que remete. Renée Zellweger, e a sua fabulosa composição de Betty, é associada à Doris Day nos anos 50 e 60, e as sugestões da mitologia do cinema não se ficam por aqui. Vários momentos “musicais”, admiravelmente encenados por Neil LaBute, apontam para esse imaginário. O diálogo entre a ficção e a realidade, entre a vida e a televisão é extremamente curioso. Afinal será ao assumir a ficção (tornando-se parte integrante da “soap”) que Betty se integra na realidade. Mas o plano final de umas “férias em Roma” (a mitologia do cinema a funcionar de novo!) não permite grandes esperanças, apesar do falso “happy end”: o empregado de café, que não desvia os olhos do écran da TV para passar a factura da conta, também ele troca a realidade pela ficção (afinal a realidade está mesmo a seu lado, e ele “não a vê”, enfeitiçado que está pela ficção!).
Renée Zellweger, já o dissemos, é simplesmente fabulosa. A sua composição é comovente, de graça, de inocência, de fulgor. Já a tínhamos visto em ”Jerry Maguires”, mas aqui supera tudo e impõe-se como uma estrela indiscutível. Morgan Freeman (Charlie), e Chris Rock (Wesley) são uma dupla de “killers” invulgares. Greg Kinnear (no duplo papel de Dr. David Ravell e do actor George McCord) relembra o seu excelente trabalho em “Melhor é Impossível”, e Aaron Eckhart (no grotesco Del Sizemore), continua a ser o actor fetiche de Neil LaButte.
Quanto ao realizador, Neil LaButte, uma das grandes promessas do cinema independente norte americano (nascido a 19 de Março de 1963, em Detroit, Michigan, EUA), depois de realizar duas obras que lhe conferiram um estatuto de culto (“In the Company of Men2 (1997) e “Your Friends & Neighbors” (1998), aparece na grande produção com este “Nurse Betty” que o revela já não como esperança, mas como um dos valores mais sólidos das novas gerações americanas. A seguir a “Betty” rodou “Possession” (2001), e “In the Company of Men” vai estar disponível em Lisboa (entre 19 e 23 de Fevereiro, no Cine 222), numa realização da Geniuzastare. A não perder também. Como a não perder é a visão de “Betty”. E digo-lhe mais: vá sem demora, porque a carreira do filme não é brilhante, e deve estar a sair das salas. O que é, no mínimo, uma injustiça.

****** BETTY (Nurse Betty), de Neil LaBute (EUA, 2000), com Morgan Freeman (Charlie), Renée Zellweger (Betty Sizemore), Chris Rock (Wesley), Greg Kinnear (Dr. David Ravell/George McCord), Aaron Eckhart (Del Sizemore), Tia Texada (Rosa), etc. 108 min; M/ 12 anos. In “A Bola”, de 11.2.2000

eXTReMe Tracker Statistiche sito,contatore visite, counter web invisibile