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Uma recolha de críticas da autoria de Lauro António, aparecidas em diversas publicações portuguesas.

quarta-feira, junho 28, 2006

RIDLEY SCOTT:
“HANNIBAL “CANNIBAL” LESTER”


Em 1991, Jonnathan Demme, sobre romance de Thomas Harris, deu à luz um clássico o filme de horror, “Silence of the Lambs” (O Silêncio dos Inocentes), onde um fabuloso Anthony Hopkins, na composição do Dr. Hannibal “Cannibal” Lester (a personagem da sua vida!) defrontava uma não menos notável Jodie Foster, na figura de Clarice Starling, uma agente do FBI destacada para interrogar o inquietante, sôfrego e voraz assassino que devora as suas vítimas. Penetrar nos segredos mais recônditos da mente de um psicopata, feito prisioneiro, para assim chegar até junto de um “serial killer” que não se consegue localizar, eis a iniciação proposta a Clarice. Da relação entre ambos, sabe-se agora que vimos a sequela, mas já descortinaramos no original, nasce uma paixão impossível e uma admiração suspeita. O sucesso foi súbito, esó espanta os anos que levou a concretizar a continuação. Ela aí está.
Mantendo Anthony Hopkins no centro do psico-drama, mas alterando tudo o mais, deve dizer-se que “Hannibal” não sustenta uma comparação com o filme inicial. Mas será esse o propósito de Ridley Scott, o realizador de O Gladiador, que assume a direcção desta obra? Em parte, é evidente que “Hannibal” continua o “Silêncio dos Inocentes”, impondo portanto a comparação. Por outro lado, Ridley Scott procura um diferente tipo de aproximação da figura de Hannibal Lester, e de todos os seus comparsas. Clarice tem agora o rosto de Julianne Moore (excelente, mas sem o peso e a crispação de Jodie Foster). Surge a personagem do inspector Pazzi (uma brilhante interpretação de Giancarlo Gaiannini, que chega a “roubar” o filme a Hopkins!). Gary Oldman é o destruído Mason Verger, que sonha vingar-se de Hannibal, idealizando tormentos inimagináveis. E temos ainda Florença, exílio dourado de Hannibal, que se passeia nas suas ruas habitadas pelo clima de fim de mundo que é bem a marca de Ridley Scott (veja-se “Blade Runner”, ou “Chuva Negra” ou mesmo “O Gladiador”).
Mais “gore” que o seu arquétipo, mais virado mesmo para o humor negro (mas um humor negro visceral!), “Hannibal” seria um bom filme de terror psicológico, não fora o caso de existir um referente com o qual é impossível impedir a comparação. Tudo indica que a continuação da continuação apareça por aí, mais ano, menos ano.


HANNIBAL (Hannibal), de Ridley Scott (EUA, 2001), com Anthony Hopkins (Hannibal Lecter ), Julianne Moore (Clarice Starling), Giancarlo Giannini (Pazzi), Gary Oldman (Mason Verger), Ray Liotta (Paul Krendler), etc.131 min; M/ 12 anos. In “A Bola” de 4.03.2001.

PEDRO ALMODOVAR:
“FALA COM ELA”


Dois homens assistem, lado a lado, a um bailado de Pina Bausch (“Café Muller”). Um chora ao ver o espectáculo da solidão e da incomunicabilidade que o palco sugere: duas mulheres, aparentemente cegas, caminham por entre as cadeiras (de um café?) que um homem diligentemente vai tentando afastar do seu caminho. Mas as mulheres esbarram contra as paredes e como autómatos repetem os mesmos gestos até à exaustão.
Os dois homens que se encontram na plateia não se conhecem mas, como sempre em Almodovar, as suas personagens parecem premonitoriamente inclinadas ao encontro num futuro e num espaço que o destino se encarregará de inventar. Benigno é enfermeiro, vive só, depois da morte da mãe a quem assistiu durante longos anos de renuncia à vida (da mãe que se enclausurou, dele que a acompanhou minuto a minuto, com apenas alguns instantes de pausa para olhar pela janela do seu quarto os movimentos de Alicia, uma jovem estudante de bailado, que frequenta as aulas no edifício em frente do seu). Na clínica onde trabalha toma conta agora de Alicia que, entretanto, vítima de um acidente de automóvel, se encontra em coma profundo.
O outro homem desta história de uma amizade que nasce por acaso, é Marco, argentino a viver em Madrid, jornalista, autor de vários guias turísticos, que escreve para o “El Pais”. Um dia encontra Lydia, uma toureira que atravessa um momento de dolorosa angústia, depois de ter sido abandonada pelo amante, com quem partilhava também as faenas nas praças de touros. Marco desconhece “tudo sobre touros, mas sabe bastante sobre mulheres desesperadas”. É assim que estabelece contacto com Lydia e é assim que se inicia um idílio, quebrado pelo acto suicida da toureira, oferecendo o corpo à arremetida dos cornos do animal, “a las cinco en punto de la tarde”, num dia em que escolhera defrontar 6 touros, perante o olhar do ex-amante e também do actual. Ela quer morrer na praça, mas apenas conseguirá ser levada para a clínica, a mesma onde se encontra Alicia, numa situação idêntica. Assim se cruzam Alicia e Lydia, Benigno e Marco, duas histórias de um amor louco e desesperado, que nem a proximidade da morte abranda, mas que se expressam por formas de convívio muito diverso. Benigno fala com Alicia, vai à Cinemateca ver os filmes mudos que ela gostava de ver, conta-lhos depois, durante sessões de amaciamento da pele e de lavagem do corpo. Marco não se consegue aproximar de Lydia e não compreende por que Benigno fala com um corpo quase cadáver que não pode ouvir. Mas o enfermeiro não tem dúvidas e não hesita: “habla con ella”, assim ela se sentirá menos só, assim sentirá a presença de alguém que se preocupa, que deseja o seu regresso à vida.
Marco é um homem que utiliza a palavra no seu dia a dia e que tem dificuldade em a usar de forma não racional. Ele escreve “Guias” e a palavra para si é ofício, trabalho, ferramenta de comunicação. Benigno serve-se da palavra de uma forma muito mais inocente e ingénua, na linha dos grandes rituais primitivos, na invocação dos espíritos. A aparente incoerência de alguns actos não o perturba – ir ver filmes “mudos” para depois os contar a Alicia é algo que não o afecta minimamente, nunca pondo em causa a “impossibilidade” da transmissão a outro de uma obra de arte que prescinde da palavra. Benigno acredita no contacto físico (as mãos no corpo de Alicia são uma terapia, um acto de amor, uma forma de diálogo), no poder da palavra (mesmo que a destinatária dessas palavras se encontre num estado puramente vegetativo – não se fala também às plantas e às flores?), no poder da partilha, da entrega, da dádiva (mesmo que essa dádiva seja uma acção unilateral e violenta, como a que estabelece por fim com Alicia e que o levará à tragédia). Quando Benigno se encontra preso, a sua necessidade de diálogo mantém-se – telefona, fala no parlatório com Marco, estende as mãos ao longo dos vidros, escreve cartas e deixa mensagens, oferece a sua casa ao amigo, partilha a sua intimidade, quer saber tudo sobre Alicia... Benigno é um ser que partilha um mundo sem maldade: quando penetra no quarto de Alicia, vai com os olhos límpidos, quando viola territórios proibidos é a pureza dos sentimentos que o comanda (o mesmo se sentindo quanto ao protagonista do filme “mudo” que vê - "Amante Menguante" - , filme que de certa forma antecipa e substitui uma cena elidida por Pedro Almodovar).
“Fala com Ela” convoca uma narrativa aparentemente de extrema complexidade, sobrepondo diversos registos que o espectador terá de reunir e a que conferirá um significado global. Por uma lado temos as “visões” de Benigno e de Marco, de início separadas, montadas em paralelo, depois unificando-se numa montagem em confluência. Mas também haverá a considerar, ainda que de uma forma muito ténue, os pontos de vista de Lydia e Alicia, sobretudo nalguns “flash backs” onde são recordadas em vida completa, e uma delas mesmo, depois dessa passagem pelo limbo da morte. Finalmente, há que não descurar a posição do realizador, a sua “visão” omnipresente de “Deus ex-machina”, que constrói a obra, a escreve e a dirige, de forma muito particular e mesmo autobiográfica (não será este filme uma consequência directa da recente morte da mãe do cineasta madrileno?) e deixa vestígios evidentes e deliberadamente assumidos desta posição – veja-se a cena rodada na casa de Sevilha de Pedro Almodovar, onde Caetano Veloso canta para uma plateia de amigos pessoais do cineasta (entre os quais actrizes como Marisa Paredes e Cecilia Roth, que nada têm a ver com este filme, mas que estabelecem uma voluntária - ou involuntária? - relação com o filme precedente deste autor: “Tudo Sobre a Minha Mãe”).
A relação com “Tudo Sobre a Minha Mãe” não se estabelece apenas aí, mas de uma outra forma, esta perfeitamente clara: no filme anterior, Almodovar termina a narrativa com a descida de uma cortina de teatro que encerra a representação. Em “Fala com Ela”, a obra inicia-se precisamente com um cortinado de teatro que sobe e deixa ver, em primeiro plano, o rosto de Pina Bausch, durante a representação de “Café Muller”. Em ambos os filmes, portanto, Almodovar procura dizer-nos que assistimos a uma representação, uma criação artística (como a dança ou a tourada, presentes em “Fala com Ela”, como o teatro, em “Tudo Sobre a Minha Mãe”), um registo manipulado com efeitos precisos dramáticos, ou não fossem estas obras recuperações sublimes do estilo do melodrama que tantas e tão gloriosas referência deixou ao longo de toda a história do cinema, desde o americano Douglas Sirk até muitos outros autores latino-americanos (inclusive o tão citado, e tão justamente, Luís Buñuel, de quem Almodóvar tanto de aproxima por vezes, de uma forma fulgurante até no pequeno filme, de sete minutos de duração, que relembra declaradamente obras surrealistas dos anos 20).
Filme sobre o poder da palavra? Sim. Mas também filme sobre a força do olhar, ou não nos encontrássemos perante uma obra que referencia espectáculos que se olham, e com os quais nos emocionamos através desse olhar. O bailado que leva Marco ao choro (o “ballet” que lhe recorda uma paixão perdida, uma memória dolorosa); a tourada, onde o artista enfrenta a morte no silêncio de uma arena, perante o olhar do público; o cinema “mudo”, cuja principal característica era exprimir-se “sem palavras”; os corpos calados das mulheres amadas que o olhar dos que as rodeiam tornam corpos vivos e desejáveis...
O que nos leva a penetrar num outro terreno, o da necrofilia, que tem sido pontualmente abordado pelo cinema, por autores como Buñuel (“Ensaio para um Crime”, entre outros) ou Hitchcock (“A Mulher que Viveu Duas Vezes”) e que Almodovar retoma brilhantemente, conciliando necrofilia e milagre, aproximando-se assim de outra obra-prima do cinema, “A Palavra”, de Carl Dreyer. Enquanto em Dreyer, uma mulher morre após um parto, e é ressuscitada pela palavra de um louco que se julga predestinado, em Almodovar, o milagre acontece de forma quase inversa: uma mulher ressuscita para a vida, após um parto, gerado na violência de uma violação, provocado por um outro predestinado. “Os caminhos do Senhor são insondáveis”, diz a voz popular, e “Fala com Ela” confirma-o.
“Benigno e Alicia”, “Marco e Lydia”, “Marco e Alicia” são as frases que pautam a narrativa, criando capítulos, dividindo espaços próprios. Os sobreviventes reconhecem-se durante uma outra representação de Pina Bausch (precisamente a cabo-verdiana “Masurca Fogo”, uma produção para Expo-98 aquando da estadia da bailarina em Lisboa), trocam olhares de uma cumplicidade evidente e falam. Mas são os olhares de Marco que prevalecem neste labirinto de encontros e desencontros que é a vida. O olhar que faz viver o cinema, que cria a magia, que faz da mentira uma verdade, “24 imagens por segundo”.
Se o cinema de Almodovar foi quase sempre um cinema de mulheres, desta feita são os homens que ocupam o lugar de protagonistas. Javier Cámara (Benigno) e Darío Grandinetti (Marco Zuloaga) são admiravelmente dirigidos e mostram-se de um rigor e de uma sobriedade notáveis, num filme que coloca Pedro Almodovar entre os maiores, e os mais raros, cineastas da actualidade. O seu trabalho revela-se de uma maturidade de estilo e de uma austeridade de processos invulgares, afastado que foi o tom picaresco e satírico da sua primeira fase “kitch” e barroca. Estamos abertamente no campo do melodrama, de um melodrama onde os sentimentos progridem secretamente, de forma ciciada, mas de uma envolvência emocional deslumbrante, como nessa cena única em que Caetano Veloso canta «Dicen que por las noches/ no más se le iba en puro llorar/ (...) Juran que el mesmo cielo/ se extremecia al oir su llanto/ como sufria por ella/ que hasta en su muerte la fue llorando.» Nunca Caetano Veloso cantou assim, ou nunca Caetano Veloso foi visto assim. Um momento de arrepiante beleza e de sublime emoção. Que apetece ver e rever, vezes sem conta, como todo o filme.
Fala, olha, canta, dança, representa, toureia, lava o corpo de uma doente, filma... mas sempre com amor, que o amor move montanhas!

FALA COM ELA (Hable con Ella), de Pedro Almodóvar (Espanha, 2002), Com Javier Cámara (Benigno), Darío Grandinetti (Marco Zuloaga), Rosario Flores (Lidia), Leonor Watling (Alicia), Geraldine Chaplin (Katerina Bilova), Paz Vega (Amparo), Fele Martínez (Alfredo), Mariola Fuentes, Chus Lampreave, José Sancho, Adolfo Fernández, Elena Anaya, Loles León, Lola Dueñas, Ana Fernández, Fernando Guillén Cuervo, Helio Pedregal, Caetano Veloso, Pina Bausch, etc. 112 minutos; M/ 12 anos. In “A Bola”, de 23.06.2002

BAZ LUHRMANN:
“MOULIN ROUGE”


Lembram-se da história do optimista e do pessimista, do copo de água meio cheio ou meio vazio? Pois “Moulin Rouge” presta-se a considerações semelhantes: tanto pode ser visto como obra de génio, com alguns falhanços pelo meio, como um filme falhado, atravessado por momentos de génio. Há em Baz Luhrmann coisas de génio, não restam dúvidas. O que já vem de obras anteriores como “Strictly Ballroom” (1992) ou “Romeo + Juliet” (1996), mas cristaliza aqui de forma inequívoca. Este australiano (nascido em 1962) tem uma imaginação transbordante, uma desmedida paixão pelo cinema e os “musicais”, uma alma romântica, excessiva e operática (não será por acaso que já foi encenador de ópera), que lhe permite agarrar em grandes histórias de amor e re-inventá-las, re-escrevê-las de uma forma muito especial. No seu caso, sou um optimista declarado.
“Moulin Rouge" é pena falhar nalguns pequenos aspectos, senão estaríamos na presença de uma obra-prima incontestável, por muito mal que alguns espíritos tacanhos dela digam. O cinema, como qualquer arte, não vive de estereótipos, evolui na sua estética, adapta-se ao seu tempo, absorve novas formas de narrativa, integra-as numa sintaxe que não se deve fossilizar. Quem diz que o cinema morreu ou vive nostálgico de um passado que é passado, quem proclama do alto da improvisada cátedra que o cinema deve ser assim ou assado, deve achar que a pintura parou no século XIX, ou pensar que Andy Wharol mais não faz do que copiar a estética da publicidade, e outras coisas de igual jaez, por muito moderno que queira parecer. Afirmar que este filme é um enorme video clip é não perceber nada do que se vê, não ter sensibilidade para aceitar novos modelos de escrita, julgar que o cinema ainda se encontra – e aí ficará para sempre – nos tempos dos Lumière.
É evidente que “Moulin Rouge” tem uma estética que o suporta. Baz Luhrmann, goste-se ou não, sabe o que faz. A ideia dele é criar um espectáculo, tal como o escritor e poeta protagonista desta trágica história de amor cria um “Espectáculo, Espectáculo!” para o novo palco do “Moulin Rouge”. Um espectáculo que se assume como um óbvio “pot-pourri” de canções que ressalta aos olhos de qualquer espectador, mas igualmente um “pot-pourri” de imagens e influências cinematográficas sacadas daqui e dali, do musical americano da época de ouro (“Um Americano em Paris”, “Serenata à Chuva” e tantos outros), de Bob Fosse (“Cabaret” ou “All That Jazz”), mas também do “Moulin Rouge”, de Huston, ou de “French Can Can”, de Jean Renoir.
A ideia evidente de Baz Luhrmann é erguer um espectáculo sobre Paris na viragem do século XIX para o século XX (espectáculo esse realizado na viragem de um novo século), sobre a vida boémia que rodeava o célebre “Moulin Rouge” de então, que Toulouse-Lautrec e outros (Satie, por exemplo) tornaram um ícone. Mas Baz Luhrmann não tenta enveredar por uma via realista de reconstituição histórica, mas sim esboçar de uma forma quase expressionista um mito através das referências lendárias que dele restam. Por isso o filme principia com os cortinados de um palco que se abrem, e encerra com os mesmos cortinados a fecharem e a concluírem a evocação da memória. Por isso a reconstituição de Paris-1900, ou dos espaços do cabaret, é feita em estúdio, na Austrália, de uma forma quase acintosa: Baz Luhrmann quer manifestamente que o espectador perceba que não está na realidade, mas numa outra realidade, a dos sonhos, dos mitos, das memórias evocadas. É um jogo que nos é proposto, um jogo onde se entra ou não. Quem não entra perde a jogada.
Christian (Ewan McGregor), oriundo de família austera, chega a Paris para beber a vida boémia de final do século. O “Moulin Rouge” é a meta, e aí encontra Satine (Nicole Kidman), uma cantora, bailarina e cortesã de luxo, que o dono do carabet, Harold Zidler (Jim Broadbent), explora a seu belo prazer, instigando-a a vender os seus favores ao Duque de Monroth (Richard Roxburgh) que promete financiar um novo espectáculo e lançar Satine como actriz. Christian entra em contacto com Toulouse-Lautrec (John Leguizamo), Satie (Matthew Whittet), e demais comparsas de Monparnasse, e todos resolvem escrever o tal espectáculo de sonho, onde (coincidência das coincidências!) uma cortesã oriental se apaixona por um tocador de cítara, e abandona os favores de um sultão endinheirado. Obviamente que Christian se apaixona loucamente por Satine, e esta por ele, indo adiando até ao impossível o fatídico encontro com o Duque. O impossível é mesmo a noite de estreia de “Espectáculo, Espectáculo!”, onde a ténue intriga do filme se mistura com a fantasia do teatro, interligando caminhos que se cruzam das mais variadas formas. Quando o amor parece triunfar, a morte (que anda sempre paredes meias com os apaixonados trágicos, veja-se “A Dama das Camélias”, por exemplo) faz a sua aparição triunfal, mas, se as lágrimas podem aflorar aos olhos dos mais sensíveis, estas nunca serão só de tristeza, mas também de prazer pelos momentos de deleite visual e musical que acabaram de presenciar.
É evidente que a intriga de “Moulin Rouge” é primária e esquemática, como esquemáticos e simplistas são os recortes psicológicos das personagens. Não é isso que interessa a Baz Luhrmann. “Moulin Rouge” é um soberbo “musical”, o mais voluptuoso e fulgurante musical dos últimos anos, com momentos absolutamente sublimes. Os “números” musicais são quase sempre fabulosos. Os excertos de intriga que os reúnem nem sempre são da mesma qualidade e por vezes descem a um nível de um decepcionante burlesco grotesco (como no caso da primeira aparição de Toulouse-Lautrec e do seu grupo de amigos), acentuado por uma representação desequilibrada e por um realização, aqui sim, algo inconsequente, e com uma montagem deficitária. Mas o início da película é fulgurante, a sequência de Satine cantando “Diamants are a Girl’s Best Friend” é divina, o “medley” que associa “All You Need Is Love”, dos Beatles, a “I’ll Always Love You”, de Whitney Houston, é magistral, a versão “Like a Virgin”, cantada por Harold Zidler, imperdível, o tango de “Roxane”, um momento de antologia. Por vezes, a magia nasce de forma encantantória, como quando os chapéus dos espectadores do “Moulin Rouge” sobem no ar, e crescem para os céus iluminados de um deslumbrante Paris de maqueta, ou quando os apaixonados se reúnem no alto do elefante que domina os telhados de Paris. Toda a sequência final, que “atira” para o “kitch” dos “musicais” indianos é igualmente exuberantemente deliciosa e, por momentos, o espectador refreia a respiração perante a beleza de alguns enquadramentos, de alguns movimentos, de algumas filmagens verticais (que homenageiam seguramente o génio nunca esquecido de Buzz Berkeley).
Deve saudar-se a coragem de Baz Luhrmann ao colocar lado a lado David Bowie e “Música no Coração”, como também se deverá sublinhar com algum desagrado um ou outro momento de desacerto já referido. Mas globalmente, este é um dos títulos de ouro de 2001, mais um “filme de culto” a acrescentar à lista dos cinéfilos, e, ou muito nos enganamos, ou já está encontrado um dos mais fortes candidatos aos “Oscars” deste ano. Direcção artística, guarda-roupa, fotografia, a inqualificável Nicole Kidman (que dizer de uma mulher e de uma actriz como esta aqui?), o excelente Ewan McGregor (seguro e discreto), o fabuloso Jim Broadbent, a própria realização de Bazz Luhrmann são candidatos certos. E alguns “Oscars” estão seguros.

MOULIN ROUGE! (Moulin Rouge!), de Baz Luhrmann (EUA, 2001), Com Nicole Kidman (Satine), Ewan McGregor (Christian), John Leguizamo (Toulouse-Lautrec), Jim Broadbent (Harold Zidler), Richard Roxburgh (Duque de Monroth), Matthew Whittet (Satie), etc. 127 minutos; M/ 12 anos. in "A Bola" de 10.11.2001.

ROLAND EMMERICH:
“O PATRIOTA”

“O Patriota” revisita os anos que antecederam a Independência dos EUA. Estamos em 1776, na Carolina do Sul. Benjamin Martin (Mel Gibson), celebrizado pela sua coragem na luta contra franceses e índios, vive agora inteiramente dedicado à sua família e herdade, e à construção de cadeiras de balouço que se vão partindo à medida que nelas se vai sentando. Uma vida sossegada, para fazer esquecer os horrores que havia praticado e havia visto, e que não queria ver repetir em frente dos filhos. Mas a ferocidade dos ingleses ocupantes, sobretudo de um tal coronel Tavington que ataca civis desarmados com a volúpia assassina de um oficial da Gestapo, leva Martin a rever as suas decisões e a solicitar o ingresso nas fileiras do exército que luta pela Independência. Com o posto de coronel e comandando um grupo de milícias armadas que descobrem novos métodos para se opôr às tradicionais tácticas dos oficiais ingleses. Em lutar de aceitar lutar em campo aberto, perante um exército poderoso e bem armado, Martin opta por uma luta de guerrilha que vai minando a confiança dos adversários e criando o mito de um "fantasma" que consegue derrotar sozinho batalhões de soldados ingleses.
Entre avanços e recuos, a guerra continua até à vitória final (que já se sabe, antes do filme se iniciar - faz parte da História!). Mas se se sabe o resultado do fim da guerra (o que não seria importante para o êxito do filme: também se conhecia de antemão o destino do Titanic), já o mesmo se não pode dizer de cada novo passo dos protagonistas desta história. O argumento, escrito por Robert Rodat (o mesmo de “O Resgate do Soldado Ryan”), não despreza um único clichet: Martin é viúvo, visita a campa da esposa, ama os filhos, será a morte de um deles que o levará a pegar em armas, cada cena de violência tem um contraponto sentimental ou humorístico, os ingleses são verdadeiros vilões, os negros lutam (?) pela sua emancipação, de forma ordeira e politicamente correcta, cada personagem é uma "personagem", as criancinhas são lindas, louras e de caracóis, as meninas (em idade de casar) são doces e puras, e os vilões da história estão lá para não deixarem em paz as crianças e as mulheres, os aleijados e os padres, os patriotas e os arruaceiros convertidos à causa. São 164 minutos sempre previsíveis. Mesmo os incêndios das igrejas com os fieis aferrolhados lá dentro são previsíveis.
Quem não gostou da previsibilidade foram os ingleses que se sentem maltratados em demasia, nem os negros que se sentem menosprezados, nem os americanos com um coeficiente de inteligência normal (ou superior) que acham que tanto patriotismo também chateia. Roland Emmerich dirigira já anteriormente um título patriótico, mas divertido, à força de tamanho exagero (“O Dia da Independência”). Agora toma-se a sério, e os americanos são mesmo um povo porreiro, tão porreiro que se calhar não existe como tal.
Com uma boa direcção artística (Kirk M. Petruccelli), um belo guarda roupa (Deborah L. Scott), uma fotografia fabulosa (de mestre Caleb Deschanel), uma partitura épica (do incontornável John Williams), “O Patriota” tem alguns bons momentos de acção (certas sequências de guerra, ou um treino militar montado em paralelo com os efeitos desse treino, por exemplo), e outras absolutamente intragáveis (Martin em contraluz na igreja, as cenas de "repouso do guerreiro" numa aldeia negra à beira mar...). Mas o melhor do filme (para lá da fotografia) é o casting masculino com uma escolha perfeita de actores para personagens. Jason Isaacs é excelente no vilão, Tom Wilkinson brilhante no General inglês, Chris Cooper confirma as qualidades demonstradas em “Beleza Americana”, e por aí fora. As actrizes não se mostram à altura e Mel Gibson alterna o bom e o banal, demonstrando que o seu forte são “As Motos da Morte” ou as “Armas Mortíferas”.
Às vezes, os filmes reaccionários são obras-primas. Já aconteceu (“O Nascimento de uma Nação”). Mas, outras vezes, os filmes aparentemente progressistas, são reaccionários pela forma como são feitos. Há quem acuse este “O Patriota” se ser fascista, apesar de mostrar a luta de um povo pela independência. Julgo que “O Patriota” trai a História em nome do espectáculo, mas o público não sai favorecido com a traição. Há crimes que não compensam.

O PATRIOTA (The Patriot), de Roland Emmerich (EUA, 2000), com Mel Gibson, Heart Ledger, Joely Richardson, Jason Isaac, Chris Cooper, Tcheky Karyo, Rene Auberjonois, Tom Wilkinson, Lisa Brenner, Adam Baldwin, etc. 164 min; M/ 12 anos. In “A Bola”, de 6.08.2000

MEL GIBSON

Mel Gibson nasceu Peekskill, Nova Iorque, nos EUA, em 3 de Janeiro de 1956 (há quem afirme que nasceu em 1951).
O pai, Hutton Gibson, transferiu-se de Nova Iorque para Sydney, New South Wales, Australia em 1968. Dizem que o pai ganhou um programa de televisão e aproveitou para levar os filhos para fora dos EUA e da eventualidade de serem recrutados para a guerra do Vietname. Mel Columcille Gerard Gibson estudou na University of New South Wales, e mais tarde estudou arte de representar no NIDA (National Insitutute of Dramatic Art), University of New South Wales, em Sydney, na Austrália.
Em 1977, estreia-se no cinema, com Summer City, de Christopher Fraser. Dois anos depois, com Mad Max, As Motos da Morte, torna-se um actor reconhecido internacionalmente, numa série que continua com Mad Max 2, O Guerreiro da Estrada e Mad Max 3, Além da Cúpula do Trovão. Já na América, uma outra série, Arma Mortífera, fará dele uma vedeta, que títulos como O Ano de Todos os Perigos, Maverick, Braveheart (que Mel Gibson também realiza com assinalável sucesso crítico e de bilheteira), Resgate ou Payback - A Vingança confirmarão como um dos actores de maior sucesso de Holywood. Criou a sua própria produtora (que produziu os dois filmes por si realizados, e também o filme de Wim Wenders, The Million Dollar Hotel).
Mel Gibson, casado com Robyn, tem sete filhos: Hannah, os gémeos Edward e Christian, William, Louis, Milo e Tommy.

Filmografia (como actor e realizador)

1977 - Summer City (Sedução e Vingança), de Christopher Fraser (Austrália)
1979 - Mad Max (As Motos da Morte), de George Miller (Austrália)
1979 - Tim, de Micheal Pate (Austrália)
1980 - The Chain Reaction, de Ian Barry (Australia) (não creditado)
1981 - "Punishment", de Julian Pringle (série de TV) (Austrália)
1981 - Gallipoli (Gallipoli), de Peter Weir (Austrália)
1981 - Mad Max 2: The Road Warrior (Mad Max 2, O Guerreira da Estrada), de George Miller (Austrália)
1982 - Attack Force Z (Comandos da Força Z), de Tim Burstall e Jing Ao Hsing (Austrália)
1982 - The Year of Living Dangerously (O Ano de Todos os Perigos), de Peter Weir (Austrália)
1984 - Mrs. Soffel, de Gillian Armstrong (EUA)
1984 - The Bounty (Revolta no Pacífico), de Roger Donaldson (EUA)
1984 - The River (O Rio), de Mark Rydler (EUA)
1985 - Mad Max Beyond Thunderdome (Mad Max, 3 Além da Cúpula do Trovão), de George Miller (Austrália, EUA)
1987 - Lethal Weapon (Arma Mortifera), de Richard Donner (EUA)
1988 - Tequila Sunrise (Intriga ao Amanhecer), de Richard Donner (EUA)
1989 - Lethal Weapon 2 (Arma Mortifera, 2), de Richard Donner (EUA)
1990 - Air America (Air America), de Richard Donner (EUA)
1990 - Bird on a Wire (Na Corda Bamba), de John Badham
1990 - Hamlet (Hamlet), de Franco Zeffirelli (Inglaterra)
1992 - Forever Young (Eternamente Jovem), de Steve Miner (EUA)
1992 - Lethal Weapon 3 (Arma Mortifera, 3), de Richard Donner (EUA)
1993 - The Man Without a Face (Homem sem Rosto), de Mel Gibson (EUA)
1994 - Maverick (Maverick) , de Richard Donner (EUA)
1995 - Braveheart (Braveheart), de Mel Gibson (Inglaterra)
1995 - Casper (Casper, o Fantasma), de Brad Silberling (EUA)
1995 - Pocahontas (Pacahontas), de Mike Gabriel e Eric Goldberg (voz) (EUA)
1996 - Ransom (Resgate), de Ron Howard (EUA)
1997 - Conspiracy Theory (Teoria da Conspiração), de Richard Donner (EUA)
1997 - Fathers' Day, de Ivan Reitman (EUA)
1998 - FairyTale: A True Story, de Charles Sturridge (EUA)
1998 - Lethal Weapon 4 (Arma Mortífera, 4), de Richard Donner (EUA)
1999 - Forever Hollywood, de Arnold Glassman e Todd McCarthy (EUA)
1999 - Payback (Payback- A Vingança), Brian Helgeland e Paul Abascal (EUA)
2000 - Chicken Run, de Peter Lord e Nick Park (EUA)
2000 - The Million Dollar Hotel (Million Dolar Hotel), de Wim Wenders (EUA)
2000 - The Patriot (O Patriota), de Roland Emmecrich (EUA)
2000 - Wallace and Grommit Go Chicken
2000 - What Women Want, de Nancy Meyers (EUA)

TIM BURTON:
"A LENDA DO CAVALEIRO SEM CABEÇA"


Tim Burton, o realizador de filmes inesquecíveis como “Eduardo Mãos de Tesoura” ou “Ed Wood”, e ainda autor de obras particularmente interessantes como “Beetlejuice”, “Batman” e “O Regresso de Batman” ou “Marte Ataca”, volta agora com outra obra absolutamente notável: “A Lenda do Cavaleiro sem Cabeça”.
O universo de Tim Burton é muito pessoal, mantendo-se com ligeiras alterações ao longo da sua filmografia, podendo integrar-se no chamado fantástico gótico, que tem em “Sleepy Hoolow” um excelente terreno para se desenvolver. Quem começa a ver as imagens iniciais desta obra não deixará de recordar-se da Hammer de finais da década de 50, e de todos os anos 60. Os processos de criar e sustentar o clima de terror são muito idênticos, muito embora possa existir uma abismal distância orçamental entre ambas as produções. O filme de Tim Burton é uma super-produção se comparada com os títulos rodados por Terence Fisher, que Burton homenageia directamente, ao escolher para o elenco de “Sleepy Hoolow” alguns dos actores presentes nas películas da Hammer, como é o caso flagrante de Christopher Lee. Acontece que Tim Burton possuiu uma invejável qualidade plástica, rigorosamente prolongada ao longo de todo o filme, compondo cada plano com a minúcia de um pintor inspirado. Depois, a inquietação é sustentada a um nível sempre bastante alto, ainda que, aqui e ali, se insinue uma ironia roçando o humor negro que distancia levemente o terror do horror "gore", onde uma obra tão rica em hemoglobina poderia facilmente cair. Finalmente, a interpretação de um elenco verdadeiramente de luxo e requinte faz o resto, transformando “A Lenda do Cavaleiro sem Cabeça” num excelente momento de cinema fantástico, que não se esgota nos limites de um género. “Sleepy Hoolow” é uma autêntica obra de autor e pode mesmo dizer-se que a personagem central de Ichabold Crane, o inspector de polícia que deixa Nova Iorque para ir investigar estranhos crimes numa longínqua aldeia, é um alter ego do próprio realizador.
Maravilhado pelas máquinas e truques ópticos que estão na base da invenção do cinema, as crianças prolongam o olhar encantando do cineasta para com as imagens que mentem, criando mundos de fantasia, onde a beleza e o horror se contaminam, não permitindo distinguir a verdade da mentira. Esse é o trabalho do inspector, que vem munido de aparelhos "científicos" para analisar fenómenos que ultrapassam a lógica, como seja a existência de um cavaleiro sem cabeça que se vinga de quem o matou assassinado vários habitantes de Sleepy Hoolow com um certeiro golpe de espada que lhes decepa as cabeças. "O Mal pode ter muitas faces, mas o mais grave é aquele que se comete em nome do puritanismo", diz Ichabold, e essa é obviamente a "moral" desta "lenda" que retoma imagens, figuras, ambientes, situações e metáforas de “Eduardo, Mãos de Tesoura” (que se mantém até agora como o melhor filme de Tim Burton).
A galeria de notáveis de Sleepy Hoolow é admiravelmente retratada, com fina ironia num desenho largo, que os actores servem na perfeição. Johnny Deep, na composição de Ichabold, é perfeito. A direcção artística, dos cenários ao guarda roupa é magnífica e o conjunto, muito embora um ou outro rodriguinho do argumento, assegura a esta obra lugar certa nos filmes de culto das próximas décadas. Não perca, portanto.

A LENDA DO CAVALEIRO SEM CABEÇA (Sleepy Hoolow), de Tim Burton (EUA, 1999), com Johnny Deep, Christina Ricci, Miranda Richardson, Michael Gambon, Casper Van Dien, etc. 105 min; M/ 12 anos. In “A Bola”, de 19.03.2000

domingo, junho 25, 2006

MANOEL DE OLIVEIRA:
“VOU PARA CASA”


Para quem anda sempre a dizer que Manoel de Oliveira é um realizador “chato”, “Vou Para Casa” é um bom exemplo de filme que deve ser visto. Não só não é “chato”, como é um filme belíssimo, excelentemente realizado, magnificamente interpretado, com um argumento muito simples, mas carregado de emoção, profundamente sentido, de uma forma que se nos afigura quase autobiográfico. Desta forma, “Vou Para Casa” é um filme que prolonga de certa forma “Viagem ao Princípio do Mundo”, dessa feita tendo Marcello Mastroianni como protagonista, lugar agora ocupado por outro actor da companhia de Oliveira: Michel Piccoli.
Será por Michel Piccoli que apetece começar esta crónica. O seu trabalho é notável, e só um actor enorme conseguiria o milagre que Piccoli consegue em certos momentos desta obra. Ele é Gilbert Valence, um actor prestigiado em Paris, com mais de setenta anos, que irá atravessar um trágico momento. Será no final de uma representação teatral de O Rei está a Morrer, de Ionesco, que irá saber que a mulher, a filha e o genro morreram num desastre de viação. Resta-lhe um neto, e uma existência amargurada. E a sensação de morte, de finitude que se aproxima a passos largos. Gilbert Valence continua a gostar de viver, de passear pelas ruas, de apreciar pequenos pormenores, uns bons sapatos que não magoam os pés, por exemplo. Mas a vida vai mudando à sua volta. A violência existe: é vítima de um assalto (um jovem, tresloucado pela droga, investe para ele com uma seringa em riste, obrigando-o a dar o casaco, o relógio, os sapatos de estimação). A profissão desgosta-o por vezes (surgem convites para telefilmes idiotas, com muita violência e sexo à mistura). Um agente procura atirá-lo para os braços de uma jovem actriz que manifestamente o ama, mas ele recusa (com algum puritanismo, não muito vulgar em Oliveira!). Um realizador americano convida-o a interpretar um papel, numa adaptação de Ulisses, de James Joyce, mas a memória atraiço-a durante as filmagens. Gilbert Valence sente-se cansado e diz apenas: “Vou para casa!” Há algum pessimismo nesta obra outonal, de fim de carreira, quase de renúncia à vida (o que está totalmente em desacordo com o vitalismo deste cineasta nonagenário que não recua perante nenhuma dificuldade, e morde a vida com um apetite voraz).
Na verdade, a forma de Manoel de Oliveira filmar esta obra é absolutamente surpreendente. Que dizer de um plano com Michel Piccoli de costas, sustentado largamente, e que permite ao actor um “tour de force” absolutamente admirável? Que dizer de uma conversa ouvida em off, enquanto a câmara de Oliveira foca os pés dos intervenientes? Que dizer dos ensaios de Ulisses, vistos através do olhar de John Malkovich? Tudo isto nos mostra que Oliveira deslocou o centro de atenção da sua obra do motivo central para aspectos acessórios, deixando a ausência povoar o seu filme. Um ausência que é a base deste filme, um dos melhores da última etapa da carreira de Oliveira.
Um filme que ensina a olhar, que enternece pela forma como olha os personagens, que mistura drama e humor com uma facilidade rara (por vezes relembra Jacques Tati, por exemplo nas cenas de café, com as trocas de lugares), que sobretudo ostenta uma facilidade na arte de filmar que só um mestre em plena maturidade e serenidade de espírito consegue transmitir. Tudo é límpido e puro nesta rara obra de arte que nos reconcilia com a vida. A não perder.

VOU PARA CASA (Je rentre à la maison), de Manoel de Oliveira (França, Portugal, 2001), com Michel Piccoli (Gilbert Valence), Catherine Deneuve (Marguerite), John Malkovich (John Crawford), Antoine Chappey (George), Leonor Baldaque (Sylvia), Leonor Silveira (Marie), Ricardo Trêpa, Isabel Ruth, etc. 90 min; M/ 12 anos. In “A Bola” de 30.09.2001

STEVEN SODERBERGH:
O REGRESSO DE
"OS 11 DO OCEANO”


Os filmes sobre grandes “golpadas” sempre fizeram as delícias do público, e alguns houve que ficaram na memória dos cinéfilos. “The Thomas Crown Affair” e “The Ocean’s Eleven” foram dois deles, e dois que justificaram muito recentemente “remakes” que não deslustraram dos originais. Muito pelo contrário. Em 1960, Lewis Milestone realizara Os 11 do Oceano, interpretado em peso pelo “gang” Sinatra. Com Las Vegas por pano de fundo, “a voz” reunia a seu lado Peter Lawford, Dean Martin, Sammy Davis Jr., Joey Bishop, Angie Dickinson e Shirley MacLaine, planeando o astucioso assalto a um casino. Para lá do gozo do filme, sentia-se o prazer de rodar na cidade mítica do jogo, cujas noites o grupo de Frank Sinatra tão bem conhecia e curtia. Não era uma obra prima, mas captava o fascínio do jogo e do risco, e transmitia essa sensação ao espectador que dele fez um “filme de culto”. De tal forma que, quarenta anos depois, e com a crise de bons argumentos que impera em Hollywood, se voltaram a lembrar dessa história e Steven Soderbergh a recuperou para o seu mais recente trabalho, depois do ano glorioso de 2000, onde, com “Traffic” e “Erin Brockovich”, foi o grande triunfador da noite dos Oscars.
A nova versão de “Ocean’s Eleven” é um filme sobre a amizade e o “glamour”. Las Vegas é o cenário ideal com o deslumbramento das luzes, a sedução do “poker”, o ambiente saturado de um vício contagiante que vai das mesas de jogo às camas dos quartos de hotel, passando pelos bares e o fumo do tabaco. Há ali de tudo para criar um ambiente de cortar à faca e Steven Soderbergh mostra-o logo na sequência inicial, com Rusty Ryan (Brad Pitt), ensinando a jogar às cartas a promissores jovens de Hollywood, com monstras de mulheres fatais por cenário, a mesa envolta num fumo espesso e os copos misturando-se com fichas e notas de dólares. É aqui que Danny Ocean (George Cloony), recém saído da prisão de New Jersey, onde cumpriu pena de seis anos, vem desembocar, preparando um novo golpe de mestre: roubar três casinos de uma vez só (o Bellagio, o Mirage, e o MGM em Las Vegas), entrando no cofre-forte que tudo indica ser inacessível. Mas aí está uma das seduções do “golpe”: o risco. Para tanto é necessário reunir uma equipa de (onze) peritos em várias especialidades e captar as simpatias de um capitalista que suporte os custos (o escolhido é Reuben Tishkoff, admiravelmente interpretado por Elliott Gould). Mas há algo mais a acrescentar à trama: Danny Ocean não procura só roubar 160 milhões de dólares do cofre de Terry Benedict (Andy Garcia), mas recuperar também a mulher, Tess (Roberts), que vive agora com o dono dos Casinos.
Nestas coisas de grandes golpadas ninguém vai exigir um argumento plausível, mas sim inteligente, original e sofisticado. Todos sabemos que o que nos mostram é altamente improvável, mas o que interessa mesmo é o exercício da fantasia e da imaginação, bem cimentado numa situação inteligente e bem sustentada. É o que acontece, tanto mais que Steven Soderbergh é um realizador com talento e segurança de estilo, e se mostra personalizado mesmo a dirigir um “mega espectáculo” inundado de vedetas. Ele não desiste de rodar longas sequências de câmara à mão, em estilo de reportagem, o que dá uma liberdade de tom inusitada a esta obra.
Há excelentes momentos de muito bom cinema em Façam as Vossas Apostas, desde sequências de acção (todo o desenrolar do golpe é muito bom, mas os preparativos estão á altura do climax) até momentos de fulgurante intimismo (há um encontro entre Danny Ocean e Tess, a uma mesa de jantar, com um diálogo notável de subentendidos e carga erótica e uma excelente representação dos dois actores, mais de Julia Roberts do que George Cloony). O elogio da cumplicidade do grupo não é alheio a uma tradição de filmes sobre a amizade musculada que existe ao longo de todo o cinema norte americano (de que os planos finais do filme são uma elegia de belo efeito plástico e simbólico, com o grupo a partir em direcções diferentes, tendo o edifício do casino e uma fonte luminosa como fundo de uma quimera sonhada e conquistada).
Brad Pitt, George Clooney, Matt Damon, Julia Roberts, Andy Garcia, Elliott Gould ou Carl Reiner são as vedetas de um elenco de luxo que sabe bem acompanhar ao longo de quase duras horas de convívio. A direcção de fotografia de Steven Doderbergh (aqui sob o pseudónimo de Peter Andrews, que já funcionara assim igualmente em “Traffic”), a banda sonora da responsabilidade de David Holmes (que homenageia o filme original, tal como o fazem as aparições de Angie Dickinson e Henry Silva, na assistência do combate de boxe, eles que são dos raros sobreviventes do filme de Milestone), e a direcção artística, cenários e guarda roupa, da responsabilidade de Philip Messina, Keith P. Cunningham, Kristen Toscano Messina e Jeffrey Kurland, são outros tantos motivos que fazem de Ocean’s Eleven um belo pretexto para uma agradável sessão de cinema.

FAÇAM AS VOSSAS APOSTAS (Ocean's Eleven), de Steven Soderbergh (EUA, 2001), com George Clooney (Daniel 'Danny' Ocean), Matt Damon (Linus Caldwell), Brad Pitt (Rusty Ryan), Julia Roberts ('Tess' Ocean), Andy Garcia (Terrence 'Terry' Benedict), Elliott Gould (Reuben Tishkoff), Carl Reiner (Saul Bloom), Scott Caan (Turk Malloy), Bernie Mac (Frankie Cattone), Casey Affleck (Virgil Malloy), Shaobo Qin (Yen Mu-Shuu), Lennox Lewis, etc. 116 minutos; M/ 12 anos. In “A Bola”, de 27.01.2001

ANG LEE:
“O TIGRE E O DRAGÃO”

“O Tigre e o Dragão” ficará seguramente como um dos grandes filmes vistos entre nós no ano de 2001. Depois de ter disputado, taco a taco, os Oscars a “Gladiador” e “Traffic”, o filme de Ang Lee cota-se também como um triunfador internacional, tanto no plano da crítica, como no do gosto de público. Na verdade, sendo uma película que custou cerca de 15 milhões de dólares, tinha cobrado uma receita de mais de 100 milhões, antes de chegar aos Oscars. “O Tigre e o Dragão” esteve nº 1 em vários países asiáticos, durante o verão passado, Estoirou nos “box offices” ingleses no final do ano de 2000, fez receitas impressionantes na Europa e nos Estados Unidos, onde se estreou em versão original, legendada, o que não costuma ser prática muito corrente, e vem demonstrar que afinal não é a língua que impede os grandes sucessos, nem a estranheza dos costumes.
“Crouching Tiger, Hidden Dragon” é um filme sobre o conflito que por vezes opõe a liberdade individual e o dever. Adaptando um dos episódios de um romance escrito no principio do século XX, por Wang Du-Lu (Ang Lee pretende mesmo que este seja o primeiro de uma trilogia retirada dessa obra), a obra pertence ao género Wuxia, que no tempo de Confúcio designava a epopeia dos ágeis lutadores que possuíam poderes extra-ordionários, como uma fabulosa rapidez de movimentos, uma velocidade estonteante e a possibilidade de voar.
Ang Lee, originário de Taiwan, mas residente nos EUA desde 1978, onde estudou Teatro na Universidade de Nova Iorque, e que antes de “O Tigre e o Dragão” nos dera filmes tão diferentes como “Tui shou” (Pushing Hands) (1992); “O Banquete de Casamento” (Hsi yen / The Wedding Banquet) (1993); “Comer, Beber, Homem, Mulher” (Yin shi nan nu /Eat Drink Man Woman) (1994); “Sensibilidade e Bom Senso” (Sense and Sensibility (1995), “A Tempestade de Gelo” (The Ice Storm) (1997) ou “Ride with the Devil” (1999/I), é um apaixonado das artes marciais, e há muito pretendia rodar uma obra como esta. Mas “Crouching Tiger, Hidden Dragon” tem pouco a ver com um vulgar filme de artes marciais, pois o essencial da sua grandeza se encontra precisamente na “sensibilidade” com que nos faz aceitar a aparência de falta de “senso” da sua obra.
Nos começos do séc. XIX, na China, o guerreiro Li Um Bai entrega o “Destino Verde”, uma espada sagrada, à sua companheira e secreto amor da sua vida, Yu Shu Lien. Ele procura abandonar a guerra, apesar de não ter cumprido a promessa que fizera, de dar caça à bruxa Jade Fox, que havia morto com ela o seu mestre. Em Beijing, Yu trava conhecimento com Jen, a filha do governador, que rouba a espada, sob influência de Jade Fox, a força do Mal que a comanda. Jen quer sobretudo demonstrar a sua liberdade, e confirma-o recusando o noivo que os pais lhe tinham destinado, e partindo para o deserto com Lo, um romântico salteador. Este “eastern”, que poderia ser a base de uma “guerra das estrelas”, se passado no futuro, serve sobretudo para profundas considerações filosóficas sobre a natureza da liberdade e de como se servir dela, e também para uma demonstração poética das possibilidades da aventura. Filme iniciático, ritualista, é nesta perspectiva que se têm de entender as sublimes cenas de acção, com os heróis enfrentando-se ao longo de vertiginosas correrias pelo espaço, trepando a telhados, esgrimindo em cima de florestas de bambu, destruindo uma taberna, ou flutuando sobre um lago. A beleza sufocante desta obra mescla de forma admirável o filme de amor louco, absoluto (diz Li Um Bai para a notável Michelle Yeoh: “Mesmo que desapareça no lugar mais obscuro, o meu amor nunca permitirá que eu seja um espírito solitário”), com a aventura em busca de si próprio, através do confronto com os outros.
Curioso ainda referir que são as mulheres que protagonizam esta história de coragem e abnegação, são elas as heroinas e as malvadas, são elas que tomam as iniciativas e conduzem o jogo, são elas que seduzem e por final mergulham do alto da cascata em direcção a um destino que têm de cumprir.
Admiravelmente realizado, numa toada de gesta guerreira cuja beleza formal nos corta a respiração, interpretado de forma sublime por actores de um rigor absoluto, “O Tigre e o Dragão” fica como umas das obras-primas deste início de um novo século. É um filme que se vê e apetece rever logo de seguida. Nada se poderá dizer de melhor.

O TIGRE E O DRAGÃO (“Wo Hu Zang Long” ou Crouching Tiger, Hidden Dragon), de Ang Lee (Taiwan, Hong Kong, EUA, 2000), com Chow Yun-Fat, Michelle Yeoh, Zhang Ziyi, Chang Chen, etc. 120 min; M/ 12 anos. In “A Bola”, de Abril de 2001

RON HOWARD:
“UMA MENTE BRILHANTE”

John Nash, prémio Nobel da matemática em 1994, está na base desta biografia, escrita para cinema por Akiva Goldsman, adaptando uma obra de Sylvia Nasar, e que Ron Howard dirigiu, com resultados interessantes em termos de narrativa, e um sucesso brilhante quer de um ponto de vista de bilheteira, quer no plano do reconhecimento público ao nível dos prémios, sobretudo em solo americano, onde o título cumpre os desígnios de alguma produção imaginada para conquistar nomeações de Oscars e ganhar a credibilidade intelectual – estamos mais uma vez na presença de uma personagem de excepção, de um destino individual que atravessa a doença e consegue superar-se pelo esforço pessoal. Um tipo de herói quotidiano que os americanos gostam de entronizar, normalmente com bons lucros.
John Nash não é, desde a sua juventude, desde os tempos de estudante na Universidade de Princetone, uma personalidade fácil, sequer “amável”. Arrogante e convencido (sintomas de algo que se virá a confirmar tempos mais tarde), procura sobretudo descobrir “a teoria original” que lhe reserve lugar no panteão da fama, sem se preocupar muito com a realidade concreta das aulas e do convívio. A competição é a sua referência. No final dos anos 40, um golpe de asa levá-lo-á à ideia de génio geradora de uma teoria que contradiz e ultrapassa Adam Smith e que revolucionou os dados matemáticos da época, tendo aceitação no campo da economia, da política ou da biologia. E da espionagem. Nash colabora então com os serviços secretos norte americanos, em plena guerra fria, decifrando códigos soviéticos.
É nessa altura que casa com Alicia, e que lentamente se sente envolvido por uma esquizofrenia que o leva a inventar interlocutores e imaginar perseguições sem igual. O seu futuro, de risonho passa a trágico, com prolongadas permanências em hospícios, curas com choques eléctricos, pesada medicação que lhe retira a potência e gera íntimos conflitos familiares, uma vida isolada, o alheamento dos trabalhos científicos e das aulas, enfim, a derrota de uma carreira. Seria, não fora a persistência de Nash e uma força de vontade inquebrantável, que o levaram a enfrentar conscientemente a crise e a tentar resolvê-la por si só. Daí ao Nobel e às canetas dos colegas de universidade depositadas na mesa onde almoça, como preito de homenagem, foi um passo. De gigante. De “uma mente bonita” (no americano) e “brilhante” (no português). De uma “mente” muito complexa, que os argumentistas aligeiraram e condensaram, deixando no esquecimento do “herói” um filho de uma outra ligação, uma prisão por suspeitas de homossexualidade, e a presença de extra terrestres nas suas alucinações persecutórias.
E o filme? Menos brilhante que “O Clube dos Poetas Mortos” (ainda que num mesmo registo), mais mediático que “O Professor” (Mr. Holland’s Opus), tão tortuoso ao nível da representação quanto “Shine” (que mereceria a Geoffrey Rush um Oscar, tal como “Uma Mente Brilhante” pode garantir a Russell Crowe segunda estatueta consecutiva, depois de “Gradiador”), “A Beautiful Mind” assinala inequívocos progressos na carreira de um actor (lembram-se dele em “American Graffitti”?) que passou a realizador e com esforçada competência vai construindo uma obra que, sem ter muito de pessoal, não deixa de despertar alguma curiosidade e por vezes certo encanto. Depois de uns anos de aprendizagem intensiva no campo do filme industrial sem memória, Ron Howard dirigiu alguns títulos saborosos, como “Splash” (1984) ou “Cocoon” (1985), passando pela epopeia “Backdraft” (1991), pelos escândalos da comunicação social em “The Paper” (1994) ou “Edtv” (1999), para culminar com a saga dos astronautas norte americanos, em “Apollo 13” (1995), e uma deambulação pela comédia natalícia em “Grinch” (2000). Nada de muito pessoal, como facilmente se infere da simples listagem, mas alguma competência técnica e um evidente empenhamento profissional.
Com “Uma Mente Brilhante”, Ron Howard não se furtando por vezes ao rodriguinho, opta quase sempre por um registo melodramático correcto e discreto, deixando brilhar as mentes dos seus actores e apagando-se atrás delas. Russell Crowe, bem apoiado nas muletas do costume, neste tipo de obras, recorre a tiques variados para mostrar a grandeza da sua representação. Jennifer Connelly (que já notaramos em “O Segredo dos Abbotts” ou “Pollock”), não precisa de muletas para mostrar todo o esplendor da sua arte. Magistral.
Com oito nomeações (que vão de melhor filme, realizador, actor, actriz secundária, argumento, montagem e música até à maquilhagem), arrisca-se a regressar a casa com alguns Oscars, sendo que o mais merecido é decididamente o de Jennifer Connelly. Mas o filme, o actor, o argumento e a música têm também algumas hipóteses.

UMA MENTE BRILHANTE (A Beautiful Mind), de Ron Howard (EUA, 2001), com Russell Crowe (John Forbes Nash, Jr.), Ed Harris (William Parcher), Jennifer Connelly (Alicia Nash), Christopher Plummer (Dr. Rosen), Paul Bettany (Charles Herman), Adam Goldberg (Richard Sol), Josh Lucas (Martin Hansen), Vivien Cardone (Marcee), etc. 134 minutos; M/ 12 anos. In “A Bola”, de 10.03.2002

E. ELIAS MERHIGE:
“A SOMBRA DO VAMPIRO”

Friedrich-Wilhelm Murnau, realizador de filmes como “Nosferatu”, “O Último dos Homens”, “Tatufo”, “Fausto”, “Aurora” ou “Tabu”, foi um dos maiores cineastas do cinema alemão, um dos autores mais importantes do expressionismo, um dos vultos maiores do cinema mudo, que viria ainda a ter um contributo notável durante o início do sonoro, até desaparecer prematuramente, com 42 anos, vítima de um acidente de automóvel.
Dado a excessos de várias ordem, com uma vida envolta numa áurea de mistério (homossexualidade, drogas?) que construiu sobre si um mito, Murnau morreu como viveu, prolongando a lenda que sobre si próprio se criara. Uma das suas obras mais polémicas nesse aspecto é precisamente “Nosferatu, Eine Symphonie des Grauens”, rodada em 1921, estreada a 5 de Março do ano seguinte, e que contem vários enigmas nunca resolvidos, entre eles a origem e a verdadeira personalidade do actor que interpreta a figura do vampiro, e que ficou conhecido por Max Schreck (obviamente um pseudónimo: Schreck significa qualquer coisa entre susto, arrepio, medo...). Na verdade, nunca se soube quem realmente interpretou este papel, e chegou mesmo a circular a tese de que teria sido o próprio Murnau a encarnar a figura.
Aproveitando este clima de mistério e enigma, que a presença do “vampiro” acentua de forma dramática, Steven Katz, que já havia escrito “Entrevista com o Vampiro”, pega no tema e transforma-o num guião que aborda as circunstâncias da rodagem de “Nosferatu”, e as relações entre Murnau, o seu actor fetiche e demais equipa. Uma vez terminado, Katz dá o guião a ler a Nicolas Cage, que se propõe produzi-lo, conjuntamente com Jeff Levine, seu produtor habitual, entregando a realização do mesmo a E. Elias Merhige, que se havia notabilizado com uma auspiciosa obra de estreia, “Begotten”. Para a dupla que protagoniza o confronto entre o realizador e o actor, Nicolas Cage pensou de imediato, “nos seus actores preferidos”, John Malkovich (na figura de Murnau) e Willem Dafoe (na de Max Schreck), para lá de contratar um elenco de luxo, onde aparecem ainda Cary Elwes (Fritz Arno Wagner), Aden Gillett (Henrick Galeen), o entertainer e actor inlgês Eddie Izzard (Gustav von Wangenheim), Udo Kier (Albin Grau) e a belíssima Catherine McCormack (Greta Schröder).
O filme de E. Elias Merhige, ao mesmo tempo que relembra as peripécias que rodearam as filmagens de “Nosferatu” e a sede de um realismo “cientifico” do seu realizador (que leva a equipa técnica a trabalhar de bata branca, como se se tratasse de um grupo de cientistas, e faz tender o filme para um quase “documentário sobre um vampiro”), investe numa curiosa análise do trabalho do realizador, associando-o ao vampirismo. Logo no início da obra, Greta Schroder dá conta dessa ameaça, ao dizer que “no teatro o público lhe dá vida, enquanto no cinema a câmara suga-lhe vida.” “A Sombra do Vampiro” engendra assim uma ficção sobre os enigmas de “Nosferatu”, imaginando que Murnau teria contrato um verdadeiro vampiro, oferecendo-lhe como “cachet” o pescoço da bela Greta Schroder, que Max Schreck iria desfrutar no derradeiro plano da obra, antes do sol o reduzir a cinzas.
Cuidada reconstituição de época, inteligente escrita de guião, boa direcção de actores (Willem Dafoe, candidato ao Oscar de Melhor Actor, tem uma boa prestação, mas já lhe vimos melhor), “A Sombra do Vampiro” fica-se, porém, um pouco áquem das expectativas criadas, faltando-lhe alguma densidade, um sopro de talento mais intenso, e menos decorativo, para transformar esta obra num verdadeiro momento único na história do cinema fantástico. Interessante, inteligente, eficaz, mas sentimos sempre que falta algo a este filme para ser “grande”.

A SOMBRA DO VAMPIRO (Shadow of the Vampire), de E. Elias Merhige (EUA, 2000), com John Malkovich, Willem Dafoe, Cary Elwes, Aden Gillett, Eddie Izzard, Udo Kier, Catherine McCormack, etc. 93 min; M/12 anos. in "A Bola", de 6.05.2001

VINCENT GALLO:
“BUFFALO'66”

Billy Brown esteve preso cinco anos por um crime que não cometeu e regressa à sua cidade natal, Buffalo, e a casa dos pais, com um único objectivo: matar o homem que ele julga ser a causa da sua fracassada vida, Scott Woods, um jogador de rugby, que falhara uma jogada decisiva numa final. Com este falhanço de Scott Woods, que muitos julgam ter sido intencional, Bill perdera a aposta da sua vida e ficara com uma pesada dívida. Teve de confessar um crime que não cometera para o débito ser saldado, o que lhe roubou cinco anos de vida.
Regressa sem grandes esperanças. Sabe o que o espera em casa dos pais: uma mãe absorvida pelo rugby e com uma paixão desmedida pelo clube da sua terra, o que a leva a nunca ter perdoado a Billy Brown o facto deste, com o seu nascimento, a ter obrigado a perder uma final – a última vez em que os Buffalos foram campeões. O pai, velho cantor de charme perdido, é um homem ressabiado, violento e agressivo.
Para os visitar, e porque nunca lhe dissera que estivera preso, tem de inventar na realidade uma namorada que imaginara ao longo dos anos de cativeiro. Para isso rapto uma aluna de bailado, Layla, que se passará a chamar Wendy para efeitos de encenação. Layla não representa porem contrafeita este papel, e lentamente vai-se apaixonado por aquele rapaz solitário e frágil na sua aparente violência. Ambos vivem umas horas de um dia que poderia ter terminado em tragédia, mas que o destino se encarregará de desviar para outras áreas. Por volta das duas da madrugada, quando Billy encontra Scott Woods, o jogador que agora é dono de um cabaret de striptease, já não é o mesmo Billy Brown que saíra da cadeia de madrugada, com uma ideia fixa na cabeça e nada a perder. Billy Brown descobriu o rosto de uma mulher, a segurança dos seus braços, e um amor correspondido.
Este é o surpreendente filme de estreia, como realizador, co-argumentista e autor da música, do actor Vincent Gallo, que já conhecíamos, como intérprete, em obras como “O Funeral”, de Abel Ferrara, ou “Arizona Dream”, de Emir Kusturika. Enquanto actor, Vincent Gallo criou já um estilo e pode dizer-se que a sua ascendência latino-americana e a sua própria aparência física o predestinaram para papeis de gangsters e mafiosos. “Buffalo 66” mantem este enquadramento, mas surpreende pela sensibilidade demonstrada, pela destreza da realização, pelo pudor do olhar, pela fulgurância poética e trágica da sua escrita, irreverente, nova, radical, moderna.
Desconcertante nas suas declarações, de um radicalismo extremo, com ideias claras que contrastam com a deambulação, a deriva on the road da personagem, Vincent Gallo dirige uma obra que é por vezes excessiva e rebuscada numa ou outra situação, mas que globalmente se mostra uma das grandes revelações dos últimos anos na América. Há momentos belíssimos nesta primeira obra que investe inteiramente na sua própria novidade. A sequência numa máquina de photomaton, com Billy “dirigindo” Layla (“Nós somos um casal, nós amamo-nos, nós passamos o tempo juntos”) é notável. A refeição em casa dos pais (uma mesa, quatro pessoas, planos alternados que vão elidindo uma das pessoas de cada vez) é de uma construção narrativa invulgar, funcionando admiravelmente. A cena de amor entre Billy e Layla, filmada num plongée vertical que enquadra a cama como um quadro é sublime e culmina numa “Pietá” fetal que “explica” todo filme. Mesmo o genérico inicial, com imagens múltiplas, é particularmente bem logrado. Para lá de um dos melhores actores da sua geração (aqui bem acompanhado pela fabulosa Christina Ricci), Vincent Gallo é agora também uma das mais vivas esperanças do seu cinema.

BUFFALO 66 (Buffalo 66), de Vincent Gallo (EUA, 1998), com Vincent Gallo, Christina Ricci, Ben Gazzara, Mickey Rourke, Rosanna Arquette, Angelica Huston, etc. 105 min; M/ 12 anos. Mundial Vídeo /Lusomundo Audiovisuais. in "A Bola" de 16.04.2000

FRANK DARABONT:
“À ESPERA DE UM MILAGRE”


Frank Darabont assinou até hoje duas longas-metragens e uma curta. Todas elas retiradas de obras de um escritor de sucesso, Stephen King. A "curta" chamava-se “The Woman in the Room”, e creio que poucos a conhecerão em Portugal. A "longa" de estreia foi “Os Condenados de Shawshank” e pode dizer-se que é hoje uma obra de culto para uma certa cinefilia. “À Espera de Um Milagre” tem ainda a curiosidade de se manter fiel ao ambiente de “Os Condenados de Shawshank”: o universo prisional, aqui com a particularidade de tudo se passar no "corredor da morte" (“The Last Walking”, que seria o título original de uma obra de Tim Robbins, com que este filme de Darabont mantém algumas afinidades).
Estamos em meados dos anos 30, numa prisão norte americana, onde existe essa "última caminhada" que conduz à cadeira eléctrica. Guardas e condenados chama-lhe "the green mile", dado que se trata de um caminho de cor verde. Estamos, portanto, em presença de mais um filme sobre a pena de morte. Mas, em lugar de uma obra realista (como algumas mais que ao tema se dedicaram até hoje), esta assume um clima fantástico (ou não estivesse Stephen King na sua origem). Sobretudo com a aparição da figura de um negro de porte majestoso (Michael Clarke Duncan, candidato ao Oscar de secundário), que vai pagar pelo crime de ter morto duas crianças, mas se revela um "bom gigante" com poderes extraordinários, roçando o milagre. A alegoria é óbvia, há mesmo quem vislumbre nesta personagem uma recuperação de Jesus Cristo (ele chama-se John Coffey, J.C.), e tudo aponta para uma caminhada para o calvário e para a martiriologia. Nada a opor, tanto mais que Darabont se diz fascinado pelo cinema de Frank Capra e esta perspectiva o poderia aproximar do tom das suas obras.
Darabont mostra-se até um cineasta com imensas potencialidades dramáticas e o seu filme atinge por vezes excelentes momentos. Mas globalmente falha. E falha, sobretudo, ao nível do argumento, respeitando demasiado o romance de Stephen King que foi inicialmente publicado em fascículos e disso mesmo se ressente. Parece que o escritor começou a obra sem saber como acabava. Foi derivando à medida que ia publicando cada novo episódio. Esse lado errático parece ter sido traumatizando para a unidade global. Há demasiadas personagens, várias histórias paralelas, flash backs aqui e ali, e no final três horas de duração que não se justificam. Começar a história no presente, parece-me um erro (o início e o fim do filme, sobretudo este último, são devastadores). Depois há situações (um guarda sádico, uma preso psicopata, a mulher do director da prisão com um tumor no cérebro, etc.) que nada acrescentam à história central, tal como nos são apresentadas. Uma maior economia de meios teria beneficiado imenso o filme.
Mas há mais. Demasiados guardas muito bonzinhos e um vilão. Demasiados condenados à morte muito simpáticos e um monstro psicótico. Parece que o mundo seria o paraíso, se não houvesse "monstros psicopatas". Este maniqueísmo revela-se de uma ligeireza de conceitos por vezes antipático. Percebe-se que, sem o querer afirmar de forma implícita, este seja um filme contra a pena de morte. Mas, também aqui a obra falha. Poderá concluir-se até que algumas penas de morte se aceitam, mas que as injustiças é que são revoltantes. Tudo isto reduz o alcance deste título, que nos mostra um Frank Daranbont muitos furos abaixo de “Os Condenados de Shawshank”. Com uma ressalva: a interpretação é globalmente excelente. Tom Hanks ao seu nível, David Morse muito bom, Sam Rockwell excelente, Harry Dean Stanton brilhante e Michael Clarke Duncan absolutamente inesquecível. Pena o filme não os merecer.

À ESPERA DE UM MILAGRE (The Green Mile), de Frank Darabont (EUA, 1999), com Tom Hanks, David Morse, Bonnie Hunt, Michael Clarke Duncan, James Cromwell, Graham Greene, Sam Rockwell, Harry Dean Stanton, etc.; 188 mn; M/ 18 anos. in "A Bola" de 16.04.2000


MARC FORSTER:
“DEPOIS DO ÓDIO”


“Monster’s Ball” é uma das boas surpresas da temporada e, apesar do Oscar que Halle Berry ganhou para “a melhor actriz do ano”, o filme talvez merecesse sair da cerimónia com mais alguma coisa nas mãos. Trata-se de um drama (ou melodrama?) de cariz social muito bem realizado, com eficácia narrativa, austeridade de processos, pudor e sensibilidade por um jovem, Marc Forster, suiço-alemão de nascimento, mas que trabalha no cinema norte americano desde 1995, e que até agora dirigira apenas “Loungers” (1995) e “Everything Put Together” (2000), antes de se tornar internacionalmente notado com “Monster's Ball” (2001). Tem neste momento entre mãos “Never Land”.
Tendo como cenário a América profunda, mais precisamente uma pequena cidade sulista, onde o racismo ainda está mais do que latente em muitos dos seus habitantes, “Depois do Ódio” reúne duas personagens que tudo parecia apontar nunca se encontrarem em sintonia: Hank Grotowski (Billy Bob Thornton) é guarda prisional, e acompanha as últimas horas de um negro condenado à morte, que deixa viuva Letitia Musgrove (Halle Berry). Hank é o elo de ligação de uma família de carrascos prisionais que tem no pai, Buck (Peter Boyle), o exemplo típico do racista puro e duro, militarista, machista e fascista retinto, e no filho Sonny (Heath Ledger), a esperança de uma mentalidade em transformação, mais aberta, mais límpida, mais humana e justa. O que o levará a sofrer com a execução a que tem de assistir. Uma prova de fraqueza que o pai não tolera, e que irá precipitar trágicas consequências.
No dia a seguir à execução de um negro que ninguém parece chorar e cujos desenhos apenas perpetuam a sua passagem pela Terra, duas famílias sofrem numa cidade perdida na aridez da paisagem do Sul dos EUA. Por ironia do destino (e intenção dos argumentistas Milo Addica e Will Rokos, também eles candidatos a Oscar), ambas perdem um filho e ambas se encontram na dor. Hank e Letitia, um guarda prisional racista que acabou de executar eficazmente um negro, marido de Letitia, e esta, uma negra revoltada com a injustiça da sociedade onde vive, cruzam-se numa estrada batida pelo vento e a chuva, e juntam-se num mesmo percurso que os irá retirar da solidão mais profunda e permitir alguns momentos de felicidade (“faz-me feliz”, pede Letitia a Hank, antecedendo uma violenta e crua cena de sexo, que é um dos momentos mais conseguidos e pungentes deste belo filme sobre sentimentos em crise).
Marc Forster não é realizador para se comprazer com rodriguinhos e efeitos fáceis. O seu olhar é distante, mas comprometido. A sua câmara filma longamente planos que deixam rastos de situações anteriores (um cigarro num cinzeiro, um guarda chupa abandona na berma da estrada...) e estes indícios permanecem como referências que condicionam o clima geral do drama que, nasce tenso, e se vai acentuando ao longo de uma viagem pelo interior de personagens dilaceradas pelo ódio, que persistem porém em viver e amar, agarradas a esperanças que teimam em permanecer vigilantes.
Para um filme destes, Marc Forster tinha de contar com actores de excepção para impor personagens de difícil caracterização. Billy Bob Thornton é notável como sempre, criando uma figura interiorizada, fria, dura, mas que lentamente vai recuperando (ou ganhando) humanidade; Halle Berry é brilhante num trabalho nervoso, vibrante, emotivo, com os sentimentos a explodiram à flor da pele; Peter Boyle, recorda uma personagem por si interpretada há largos anos, “Joe”, e merecia dele não se terem esquecido nas nomeações para os Oscars de secundários; quanto a Hearth Ledger, que nos lembre, é a sua mais convincente interpretação, lembrando James Dean na derradeira cena em que aparece, confessando o seu incompreendido amor pelo pai (Por aqui passa “A Leste do Paraiso”).
A descoberta do amor a partir de um sentimento de carência é a base desta bela obra que o espectador não deve perder. Não é todos os dias que o cinema nos oferece um filme visualmente tão intenso e tão rigoroso no seu traçado emocional.

DEPOIS DO ÓDIO (Monster's Ball), de Marc Forster (EUA, 2001), com Billy Bob Thornton (Hank Grotowski), Halle Berry (Leticia Musgrove), Peter Boyle (Buck Grotowski), Heath Ledger (Sonny Grotowski), Sean 'Puffy' Combs (Lawrence Musgrove), Dante Beze (Ryrus Cooper), Coronji Calhoun (Tyrell Musgrove), etc. 111 minutos; M/ 16 anos. / in “A Bola”, de 14.04.2002

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