LA_Arquivo

Uma recolha de críticas da autoria de Lauro António, aparecidas em diversas publicações portuguesas.

domingo, junho 25, 2006

MANOEL DE OLIVEIRA:
“VOU PARA CASA”


Para quem anda sempre a dizer que Manoel de Oliveira é um realizador “chato”, “Vou Para Casa” é um bom exemplo de filme que deve ser visto. Não só não é “chato”, como é um filme belíssimo, excelentemente realizado, magnificamente interpretado, com um argumento muito simples, mas carregado de emoção, profundamente sentido, de uma forma que se nos afigura quase autobiográfico. Desta forma, “Vou Para Casa” é um filme que prolonga de certa forma “Viagem ao Princípio do Mundo”, dessa feita tendo Marcello Mastroianni como protagonista, lugar agora ocupado por outro actor da companhia de Oliveira: Michel Piccoli.
Será por Michel Piccoli que apetece começar esta crónica. O seu trabalho é notável, e só um actor enorme conseguiria o milagre que Piccoli consegue em certos momentos desta obra. Ele é Gilbert Valence, um actor prestigiado em Paris, com mais de setenta anos, que irá atravessar um trágico momento. Será no final de uma representação teatral de O Rei está a Morrer, de Ionesco, que irá saber que a mulher, a filha e o genro morreram num desastre de viação. Resta-lhe um neto, e uma existência amargurada. E a sensação de morte, de finitude que se aproxima a passos largos. Gilbert Valence continua a gostar de viver, de passear pelas ruas, de apreciar pequenos pormenores, uns bons sapatos que não magoam os pés, por exemplo. Mas a vida vai mudando à sua volta. A violência existe: é vítima de um assalto (um jovem, tresloucado pela droga, investe para ele com uma seringa em riste, obrigando-o a dar o casaco, o relógio, os sapatos de estimação). A profissão desgosta-o por vezes (surgem convites para telefilmes idiotas, com muita violência e sexo à mistura). Um agente procura atirá-lo para os braços de uma jovem actriz que manifestamente o ama, mas ele recusa (com algum puritanismo, não muito vulgar em Oliveira!). Um realizador americano convida-o a interpretar um papel, numa adaptação de Ulisses, de James Joyce, mas a memória atraiço-a durante as filmagens. Gilbert Valence sente-se cansado e diz apenas: “Vou para casa!” Há algum pessimismo nesta obra outonal, de fim de carreira, quase de renúncia à vida (o que está totalmente em desacordo com o vitalismo deste cineasta nonagenário que não recua perante nenhuma dificuldade, e morde a vida com um apetite voraz).
Na verdade, a forma de Manoel de Oliveira filmar esta obra é absolutamente surpreendente. Que dizer de um plano com Michel Piccoli de costas, sustentado largamente, e que permite ao actor um “tour de force” absolutamente admirável? Que dizer de uma conversa ouvida em off, enquanto a câmara de Oliveira foca os pés dos intervenientes? Que dizer dos ensaios de Ulisses, vistos através do olhar de John Malkovich? Tudo isto nos mostra que Oliveira deslocou o centro de atenção da sua obra do motivo central para aspectos acessórios, deixando a ausência povoar o seu filme. Um ausência que é a base deste filme, um dos melhores da última etapa da carreira de Oliveira.
Um filme que ensina a olhar, que enternece pela forma como olha os personagens, que mistura drama e humor com uma facilidade rara (por vezes relembra Jacques Tati, por exemplo nas cenas de café, com as trocas de lugares), que sobretudo ostenta uma facilidade na arte de filmar que só um mestre em plena maturidade e serenidade de espírito consegue transmitir. Tudo é límpido e puro nesta rara obra de arte que nos reconcilia com a vida. A não perder.

VOU PARA CASA (Je rentre à la maison), de Manoel de Oliveira (França, Portugal, 2001), com Michel Piccoli (Gilbert Valence), Catherine Deneuve (Marguerite), John Malkovich (John Crawford), Antoine Chappey (George), Leonor Baldaque (Sylvia), Leonor Silveira (Marie), Ricardo Trêpa, Isabel Ruth, etc. 90 min; M/ 12 anos. In “A Bola” de 30.09.2001

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