LA_Arquivo

Uma recolha de críticas da autoria de Lauro António, aparecidas em diversas publicações portuguesas.

quarta-feira, junho 28, 2006

PEDRO ALMODOVAR:
“FALA COM ELA”


Dois homens assistem, lado a lado, a um bailado de Pina Bausch (“Café Muller”). Um chora ao ver o espectáculo da solidão e da incomunicabilidade que o palco sugere: duas mulheres, aparentemente cegas, caminham por entre as cadeiras (de um café?) que um homem diligentemente vai tentando afastar do seu caminho. Mas as mulheres esbarram contra as paredes e como autómatos repetem os mesmos gestos até à exaustão.
Os dois homens que se encontram na plateia não se conhecem mas, como sempre em Almodovar, as suas personagens parecem premonitoriamente inclinadas ao encontro num futuro e num espaço que o destino se encarregará de inventar. Benigno é enfermeiro, vive só, depois da morte da mãe a quem assistiu durante longos anos de renuncia à vida (da mãe que se enclausurou, dele que a acompanhou minuto a minuto, com apenas alguns instantes de pausa para olhar pela janela do seu quarto os movimentos de Alicia, uma jovem estudante de bailado, que frequenta as aulas no edifício em frente do seu). Na clínica onde trabalha toma conta agora de Alicia que, entretanto, vítima de um acidente de automóvel, se encontra em coma profundo.
O outro homem desta história de uma amizade que nasce por acaso, é Marco, argentino a viver em Madrid, jornalista, autor de vários guias turísticos, que escreve para o “El Pais”. Um dia encontra Lydia, uma toureira que atravessa um momento de dolorosa angústia, depois de ter sido abandonada pelo amante, com quem partilhava também as faenas nas praças de touros. Marco desconhece “tudo sobre touros, mas sabe bastante sobre mulheres desesperadas”. É assim que estabelece contacto com Lydia e é assim que se inicia um idílio, quebrado pelo acto suicida da toureira, oferecendo o corpo à arremetida dos cornos do animal, “a las cinco en punto de la tarde”, num dia em que escolhera defrontar 6 touros, perante o olhar do ex-amante e também do actual. Ela quer morrer na praça, mas apenas conseguirá ser levada para a clínica, a mesma onde se encontra Alicia, numa situação idêntica. Assim se cruzam Alicia e Lydia, Benigno e Marco, duas histórias de um amor louco e desesperado, que nem a proximidade da morte abranda, mas que se expressam por formas de convívio muito diverso. Benigno fala com Alicia, vai à Cinemateca ver os filmes mudos que ela gostava de ver, conta-lhos depois, durante sessões de amaciamento da pele e de lavagem do corpo. Marco não se consegue aproximar de Lydia e não compreende por que Benigno fala com um corpo quase cadáver que não pode ouvir. Mas o enfermeiro não tem dúvidas e não hesita: “habla con ella”, assim ela se sentirá menos só, assim sentirá a presença de alguém que se preocupa, que deseja o seu regresso à vida.
Marco é um homem que utiliza a palavra no seu dia a dia e que tem dificuldade em a usar de forma não racional. Ele escreve “Guias” e a palavra para si é ofício, trabalho, ferramenta de comunicação. Benigno serve-se da palavra de uma forma muito mais inocente e ingénua, na linha dos grandes rituais primitivos, na invocação dos espíritos. A aparente incoerência de alguns actos não o perturba – ir ver filmes “mudos” para depois os contar a Alicia é algo que não o afecta minimamente, nunca pondo em causa a “impossibilidade” da transmissão a outro de uma obra de arte que prescinde da palavra. Benigno acredita no contacto físico (as mãos no corpo de Alicia são uma terapia, um acto de amor, uma forma de diálogo), no poder da palavra (mesmo que a destinatária dessas palavras se encontre num estado puramente vegetativo – não se fala também às plantas e às flores?), no poder da partilha, da entrega, da dádiva (mesmo que essa dádiva seja uma acção unilateral e violenta, como a que estabelece por fim com Alicia e que o levará à tragédia). Quando Benigno se encontra preso, a sua necessidade de diálogo mantém-se – telefona, fala no parlatório com Marco, estende as mãos ao longo dos vidros, escreve cartas e deixa mensagens, oferece a sua casa ao amigo, partilha a sua intimidade, quer saber tudo sobre Alicia... Benigno é um ser que partilha um mundo sem maldade: quando penetra no quarto de Alicia, vai com os olhos límpidos, quando viola territórios proibidos é a pureza dos sentimentos que o comanda (o mesmo se sentindo quanto ao protagonista do filme “mudo” que vê - "Amante Menguante" - , filme que de certa forma antecipa e substitui uma cena elidida por Pedro Almodovar).
“Fala com Ela” convoca uma narrativa aparentemente de extrema complexidade, sobrepondo diversos registos que o espectador terá de reunir e a que conferirá um significado global. Por uma lado temos as “visões” de Benigno e de Marco, de início separadas, montadas em paralelo, depois unificando-se numa montagem em confluência. Mas também haverá a considerar, ainda que de uma forma muito ténue, os pontos de vista de Lydia e Alicia, sobretudo nalguns “flash backs” onde são recordadas em vida completa, e uma delas mesmo, depois dessa passagem pelo limbo da morte. Finalmente, há que não descurar a posição do realizador, a sua “visão” omnipresente de “Deus ex-machina”, que constrói a obra, a escreve e a dirige, de forma muito particular e mesmo autobiográfica (não será este filme uma consequência directa da recente morte da mãe do cineasta madrileno?) e deixa vestígios evidentes e deliberadamente assumidos desta posição – veja-se a cena rodada na casa de Sevilha de Pedro Almodovar, onde Caetano Veloso canta para uma plateia de amigos pessoais do cineasta (entre os quais actrizes como Marisa Paredes e Cecilia Roth, que nada têm a ver com este filme, mas que estabelecem uma voluntária - ou involuntária? - relação com o filme precedente deste autor: “Tudo Sobre a Minha Mãe”).
A relação com “Tudo Sobre a Minha Mãe” não se estabelece apenas aí, mas de uma outra forma, esta perfeitamente clara: no filme anterior, Almodovar termina a narrativa com a descida de uma cortina de teatro que encerra a representação. Em “Fala com Ela”, a obra inicia-se precisamente com um cortinado de teatro que sobe e deixa ver, em primeiro plano, o rosto de Pina Bausch, durante a representação de “Café Muller”. Em ambos os filmes, portanto, Almodovar procura dizer-nos que assistimos a uma representação, uma criação artística (como a dança ou a tourada, presentes em “Fala com Ela”, como o teatro, em “Tudo Sobre a Minha Mãe”), um registo manipulado com efeitos precisos dramáticos, ou não fossem estas obras recuperações sublimes do estilo do melodrama que tantas e tão gloriosas referência deixou ao longo de toda a história do cinema, desde o americano Douglas Sirk até muitos outros autores latino-americanos (inclusive o tão citado, e tão justamente, Luís Buñuel, de quem Almodóvar tanto de aproxima por vezes, de uma forma fulgurante até no pequeno filme, de sete minutos de duração, que relembra declaradamente obras surrealistas dos anos 20).
Filme sobre o poder da palavra? Sim. Mas também filme sobre a força do olhar, ou não nos encontrássemos perante uma obra que referencia espectáculos que se olham, e com os quais nos emocionamos através desse olhar. O bailado que leva Marco ao choro (o “ballet” que lhe recorda uma paixão perdida, uma memória dolorosa); a tourada, onde o artista enfrenta a morte no silêncio de uma arena, perante o olhar do público; o cinema “mudo”, cuja principal característica era exprimir-se “sem palavras”; os corpos calados das mulheres amadas que o olhar dos que as rodeiam tornam corpos vivos e desejáveis...
O que nos leva a penetrar num outro terreno, o da necrofilia, que tem sido pontualmente abordado pelo cinema, por autores como Buñuel (“Ensaio para um Crime”, entre outros) ou Hitchcock (“A Mulher que Viveu Duas Vezes”) e que Almodovar retoma brilhantemente, conciliando necrofilia e milagre, aproximando-se assim de outra obra-prima do cinema, “A Palavra”, de Carl Dreyer. Enquanto em Dreyer, uma mulher morre após um parto, e é ressuscitada pela palavra de um louco que se julga predestinado, em Almodovar, o milagre acontece de forma quase inversa: uma mulher ressuscita para a vida, após um parto, gerado na violência de uma violação, provocado por um outro predestinado. “Os caminhos do Senhor são insondáveis”, diz a voz popular, e “Fala com Ela” confirma-o.
“Benigno e Alicia”, “Marco e Lydia”, “Marco e Alicia” são as frases que pautam a narrativa, criando capítulos, dividindo espaços próprios. Os sobreviventes reconhecem-se durante uma outra representação de Pina Bausch (precisamente a cabo-verdiana “Masurca Fogo”, uma produção para Expo-98 aquando da estadia da bailarina em Lisboa), trocam olhares de uma cumplicidade evidente e falam. Mas são os olhares de Marco que prevalecem neste labirinto de encontros e desencontros que é a vida. O olhar que faz viver o cinema, que cria a magia, que faz da mentira uma verdade, “24 imagens por segundo”.
Se o cinema de Almodovar foi quase sempre um cinema de mulheres, desta feita são os homens que ocupam o lugar de protagonistas. Javier Cámara (Benigno) e Darío Grandinetti (Marco Zuloaga) são admiravelmente dirigidos e mostram-se de um rigor e de uma sobriedade notáveis, num filme que coloca Pedro Almodovar entre os maiores, e os mais raros, cineastas da actualidade. O seu trabalho revela-se de uma maturidade de estilo e de uma austeridade de processos invulgares, afastado que foi o tom picaresco e satírico da sua primeira fase “kitch” e barroca. Estamos abertamente no campo do melodrama, de um melodrama onde os sentimentos progridem secretamente, de forma ciciada, mas de uma envolvência emocional deslumbrante, como nessa cena única em que Caetano Veloso canta «Dicen que por las noches/ no más se le iba en puro llorar/ (...) Juran que el mesmo cielo/ se extremecia al oir su llanto/ como sufria por ella/ que hasta en su muerte la fue llorando.» Nunca Caetano Veloso cantou assim, ou nunca Caetano Veloso foi visto assim. Um momento de arrepiante beleza e de sublime emoção. Que apetece ver e rever, vezes sem conta, como todo o filme.
Fala, olha, canta, dança, representa, toureia, lava o corpo de uma doente, filma... mas sempre com amor, que o amor move montanhas!

FALA COM ELA (Hable con Ella), de Pedro Almodóvar (Espanha, 2002), Com Javier Cámara (Benigno), Darío Grandinetti (Marco Zuloaga), Rosario Flores (Lidia), Leonor Watling (Alicia), Geraldine Chaplin (Katerina Bilova), Paz Vega (Amparo), Fele Martínez (Alfredo), Mariola Fuentes, Chus Lampreave, José Sancho, Adolfo Fernández, Elena Anaya, Loles León, Lola Dueñas, Ana Fernández, Fernando Guillén Cuervo, Helio Pedregal, Caetano Veloso, Pina Bausch, etc. 112 minutos; M/ 12 anos. In “A Bola”, de 23.06.2002

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