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Uma recolha de críticas da autoria de Lauro António, aparecidas em diversas publicações portuguesas.

quarta-feira, junho 28, 2006

BAZ LUHRMANN:
“MOULIN ROUGE”


Lembram-se da história do optimista e do pessimista, do copo de água meio cheio ou meio vazio? Pois “Moulin Rouge” presta-se a considerações semelhantes: tanto pode ser visto como obra de génio, com alguns falhanços pelo meio, como um filme falhado, atravessado por momentos de génio. Há em Baz Luhrmann coisas de génio, não restam dúvidas. O que já vem de obras anteriores como “Strictly Ballroom” (1992) ou “Romeo + Juliet” (1996), mas cristaliza aqui de forma inequívoca. Este australiano (nascido em 1962) tem uma imaginação transbordante, uma desmedida paixão pelo cinema e os “musicais”, uma alma romântica, excessiva e operática (não será por acaso que já foi encenador de ópera), que lhe permite agarrar em grandes histórias de amor e re-inventá-las, re-escrevê-las de uma forma muito especial. No seu caso, sou um optimista declarado.
“Moulin Rouge" é pena falhar nalguns pequenos aspectos, senão estaríamos na presença de uma obra-prima incontestável, por muito mal que alguns espíritos tacanhos dela digam. O cinema, como qualquer arte, não vive de estereótipos, evolui na sua estética, adapta-se ao seu tempo, absorve novas formas de narrativa, integra-as numa sintaxe que não se deve fossilizar. Quem diz que o cinema morreu ou vive nostálgico de um passado que é passado, quem proclama do alto da improvisada cátedra que o cinema deve ser assim ou assado, deve achar que a pintura parou no século XIX, ou pensar que Andy Wharol mais não faz do que copiar a estética da publicidade, e outras coisas de igual jaez, por muito moderno que queira parecer. Afirmar que este filme é um enorme video clip é não perceber nada do que se vê, não ter sensibilidade para aceitar novos modelos de escrita, julgar que o cinema ainda se encontra – e aí ficará para sempre – nos tempos dos Lumière.
É evidente que “Moulin Rouge” tem uma estética que o suporta. Baz Luhrmann, goste-se ou não, sabe o que faz. A ideia dele é criar um espectáculo, tal como o escritor e poeta protagonista desta trágica história de amor cria um “Espectáculo, Espectáculo!” para o novo palco do “Moulin Rouge”. Um espectáculo que se assume como um óbvio “pot-pourri” de canções que ressalta aos olhos de qualquer espectador, mas igualmente um “pot-pourri” de imagens e influências cinematográficas sacadas daqui e dali, do musical americano da época de ouro (“Um Americano em Paris”, “Serenata à Chuva” e tantos outros), de Bob Fosse (“Cabaret” ou “All That Jazz”), mas também do “Moulin Rouge”, de Huston, ou de “French Can Can”, de Jean Renoir.
A ideia evidente de Baz Luhrmann é erguer um espectáculo sobre Paris na viragem do século XIX para o século XX (espectáculo esse realizado na viragem de um novo século), sobre a vida boémia que rodeava o célebre “Moulin Rouge” de então, que Toulouse-Lautrec e outros (Satie, por exemplo) tornaram um ícone. Mas Baz Luhrmann não tenta enveredar por uma via realista de reconstituição histórica, mas sim esboçar de uma forma quase expressionista um mito através das referências lendárias que dele restam. Por isso o filme principia com os cortinados de um palco que se abrem, e encerra com os mesmos cortinados a fecharem e a concluírem a evocação da memória. Por isso a reconstituição de Paris-1900, ou dos espaços do cabaret, é feita em estúdio, na Austrália, de uma forma quase acintosa: Baz Luhrmann quer manifestamente que o espectador perceba que não está na realidade, mas numa outra realidade, a dos sonhos, dos mitos, das memórias evocadas. É um jogo que nos é proposto, um jogo onde se entra ou não. Quem não entra perde a jogada.
Christian (Ewan McGregor), oriundo de família austera, chega a Paris para beber a vida boémia de final do século. O “Moulin Rouge” é a meta, e aí encontra Satine (Nicole Kidman), uma cantora, bailarina e cortesã de luxo, que o dono do carabet, Harold Zidler (Jim Broadbent), explora a seu belo prazer, instigando-a a vender os seus favores ao Duque de Monroth (Richard Roxburgh) que promete financiar um novo espectáculo e lançar Satine como actriz. Christian entra em contacto com Toulouse-Lautrec (John Leguizamo), Satie (Matthew Whittet), e demais comparsas de Monparnasse, e todos resolvem escrever o tal espectáculo de sonho, onde (coincidência das coincidências!) uma cortesã oriental se apaixona por um tocador de cítara, e abandona os favores de um sultão endinheirado. Obviamente que Christian se apaixona loucamente por Satine, e esta por ele, indo adiando até ao impossível o fatídico encontro com o Duque. O impossível é mesmo a noite de estreia de “Espectáculo, Espectáculo!”, onde a ténue intriga do filme se mistura com a fantasia do teatro, interligando caminhos que se cruzam das mais variadas formas. Quando o amor parece triunfar, a morte (que anda sempre paredes meias com os apaixonados trágicos, veja-se “A Dama das Camélias”, por exemplo) faz a sua aparição triunfal, mas, se as lágrimas podem aflorar aos olhos dos mais sensíveis, estas nunca serão só de tristeza, mas também de prazer pelos momentos de deleite visual e musical que acabaram de presenciar.
É evidente que a intriga de “Moulin Rouge” é primária e esquemática, como esquemáticos e simplistas são os recortes psicológicos das personagens. Não é isso que interessa a Baz Luhrmann. “Moulin Rouge” é um soberbo “musical”, o mais voluptuoso e fulgurante musical dos últimos anos, com momentos absolutamente sublimes. Os “números” musicais são quase sempre fabulosos. Os excertos de intriga que os reúnem nem sempre são da mesma qualidade e por vezes descem a um nível de um decepcionante burlesco grotesco (como no caso da primeira aparição de Toulouse-Lautrec e do seu grupo de amigos), acentuado por uma representação desequilibrada e por um realização, aqui sim, algo inconsequente, e com uma montagem deficitária. Mas o início da película é fulgurante, a sequência de Satine cantando “Diamants are a Girl’s Best Friend” é divina, o “medley” que associa “All You Need Is Love”, dos Beatles, a “I’ll Always Love You”, de Whitney Houston, é magistral, a versão “Like a Virgin”, cantada por Harold Zidler, imperdível, o tango de “Roxane”, um momento de antologia. Por vezes, a magia nasce de forma encantantória, como quando os chapéus dos espectadores do “Moulin Rouge” sobem no ar, e crescem para os céus iluminados de um deslumbrante Paris de maqueta, ou quando os apaixonados se reúnem no alto do elefante que domina os telhados de Paris. Toda a sequência final, que “atira” para o “kitch” dos “musicais” indianos é igualmente exuberantemente deliciosa e, por momentos, o espectador refreia a respiração perante a beleza de alguns enquadramentos, de alguns movimentos, de algumas filmagens verticais (que homenageiam seguramente o génio nunca esquecido de Buzz Berkeley).
Deve saudar-se a coragem de Baz Luhrmann ao colocar lado a lado David Bowie e “Música no Coração”, como também se deverá sublinhar com algum desagrado um ou outro momento de desacerto já referido. Mas globalmente, este é um dos títulos de ouro de 2001, mais um “filme de culto” a acrescentar à lista dos cinéfilos, e, ou muito nos enganamos, ou já está encontrado um dos mais fortes candidatos aos “Oscars” deste ano. Direcção artística, guarda-roupa, fotografia, a inqualificável Nicole Kidman (que dizer de uma mulher e de uma actriz como esta aqui?), o excelente Ewan McGregor (seguro e discreto), o fabuloso Jim Broadbent, a própria realização de Bazz Luhrmann são candidatos certos. E alguns “Oscars” estão seguros.

MOULIN ROUGE! (Moulin Rouge!), de Baz Luhrmann (EUA, 2001), Com Nicole Kidman (Satine), Ewan McGregor (Christian), John Leguizamo (Toulouse-Lautrec), Jim Broadbent (Harold Zidler), Richard Roxburgh (Duque de Monroth), Matthew Whittet (Satie), etc. 127 minutos; M/ 12 anos. in "A Bola" de 10.11.2001.

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